Foto de Daniel Filipe Rodrigues




Lá vou sonhar


Sentemo-nos à beira das águas deste rio 

meus filhos 

Deixo-vos um mundo doente assumo 

a minha parte de responsabilidade 

fui fumador 

guerreei

fui predador dos alimentos 

que defequei e urinei

e respirei ___ toda a vida sem intervalos 


durante esse acto repetido da respiração 

nenhuma dúvida me convocou

nenhum alerta 

nenhum discernimento 

que me obrigasse por dever de consciência 

ao movimento de um abaixo-assinado 

a favor da nossa extinção 

lenta e ordenada 

que tomasse em conta as prioridades 

a estabelecer pelos entendidos 

por nós nomeados 

segundo as suas competências  

assim como se elaborassem

uma reforma do planeta

o fim das fronteiras

o fim das instituições 

o fim do homem

o fim do mundo 

de modo a evitar os exageros caóticos 

das guerras e dos atentados 

que poderão levar ao mesmo fim


os cataclismos deixariam aos poucos 

de ser uma ameaça ___ o silêncio voltaria

aos vales 

às planícies 

às montanhas 

e o som do vento e das brisas 

cantaria passando por entre as árvores 

e substituiria as vozes humanas 

a natureza voltaria ao seu equilíbrio 

que foi sonhado por um qualquer deus

que foi inventado pelo homem 

e que morreria com ele 


Agora 

na minha morte 

aqui está o meu cadáver 

o último acto poluente que vos deixo 

meus filhos 

este poema será apenas um papel

amachucado que seguirá comigo

rio abaixo

lancem-me agora às águas ___ vá 

deixem-me lá sonhar!




 Foto do autor do texto tomada do documentário NOSSO MUNDO





16 comentários:

  1. Um poema extensivo da realidade que se vive actualmente como um murro no estômago! Um testamento que eu não faria melhor embora eu pense sempre numa realidade mais otimista!
    A primeira foto levou-me à minha juventude quando fiz natação competitiva e os treinos era numa plataforma idêntica na baía de Luanda. Belos tempos e mal sabia que pouco tempo depois estouraria uma danada guerra civil que felizmente sobrevivi!
    Beijos e um bom domingo

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    1. O texto publicado teve o imprevisível efeito de a transportar ao seu passado. O seu reconhecimento de que não faria melhor este testamento, deixa o autor convencido da valia do que aqui deixou escrito.
      Um abraço.

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  2. Miradas desde mi lente deixou um novo comentário na mensagem "":

    Si no ponemos remedio, vamos a dejar un mundo contaminado y eso es responsabilidad de todos los que habitamos en él.
    Besos.

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    1. El mundo está entrando en un estado terminal. La codicia del capitalismo eventualmente causará la extinción de la vida. Un abrazo.

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  3. A lindíssima fotografia do filho mais velho dá alguma luz na escuridão do poema.
    Palavras de brutais, embora poéticas, de sobrevivência marcadas de um tom eletrizante.

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  4. Que belíssimo poema, L.!

    Não vejo nele escuridão nenhuma, a menos que seja a da antecipação da morte do poeta... E todos nós cabemos ou caberemos um dia neste poema profundamente datado pelas alterações climáticas, o que lhe não retira um único pingo de valor.

    Parabéns e um forte abraço!

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    1. Sinto-me confortado com a sua opinião que vai direitinha ao meu pensamento.
      Um abraço.

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  5. É certo que em muito e há muito ultrapassámos aquilo que o planeta pode assimilar.
    O que deixamos de exemplo para com o ambiente aos nossos, poderá ser positivo mas, não se livrarão de gravíssimos problemas para enfrentar e tentar remediar.
    O alerta nas suas palavras aqui partilhadas, dá nota disso e numa tónica grave para que se sinta o peso dessa herança.
    O homem nem para si próprio toma as devidas precauções, dificilmente o fará pensando no outro.
    A todo o instante vemos a preocupação momentânea de chegar onde se quer, sacrificando o futuro, tudo e todos, tal como se não houvesse amanhã e não tivessem filhos, netos, família a quem irão entregar uma autêntica lixeira e onde respirar não será fácil.
    Este é um poema de consciência que gostei de ler.
    Um kandando com votos de um bom final de domingo.

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    1. Apreciei e tomei em conta as suas sensatas palavras, que agradeço.
      Um abraço.

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  6. Uma excelente fotografia.
    Um poema retrato da realidade deste mundo em que vivemos. Um alerta, e uma pedrada no charco da nossa vilania para com o planeta e a vida que deixamos para as próximas gerações.
    Abraço e saúde

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  7. Anónimo

    "Bastava-nos amar. E não bastava
    O mar. E o corpo? O corpo que se enleia?
    O vento como um barco: a navegar.
    Pelo mar. Por um rio ou uma veia.

    Bastava-nos ficar. E não bastava
    O mar a querer doer em cada ideia.
    Já não bastava olhar. Urgente: Amar.
    E ficar. E fazermos uma teia.

    Respirar. Respirar. Até que o mar
    pudesse ser amor em maré cheia.
    E bastava. Bastava respirar

    A tua pele molhada de sereia.
    Bastava, sim, encher o peito de ar.
    Fazer amor contigo sobre a areia."

    Joaquim Pessoa.

    Descanse em Paz, Poeta!

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  8. Caro Poeta/Pintor
    Um poema excelente mas que me causou desconforto.
    Fala da morte e embora ela seja certa, náo sei lidar muito bem nem com a palavra em si.
    Se lermos com atenção o poema é uma forma de uma ultima vontade do Poeta, e a foto de suporte está a suavizar o tema.
    É curioso que eu também digo, que as minhas cinzas sejam lançadas ao mar.
    Boa semana com saúde e harmonia.
    :)
    PS:Não tenho tido muita sorte em comentar, comento, mas desaparecem quase todos.

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    1. A morte é um tema infindável para todos os poetas, mas incómodo também.

      Há comentários que não entram aqui no blog mas eu vou buscá-los ao mail e publico-os aqui. Os seus também.

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