A primeira morte do meu pai


O meu pai vem devagar

pelo corredor ___ longo ___

da nossa casa 

há pouca luz no tecto branco

o meu pai apoia-se 

com a mão direita na parede pintada

com decoração a imitar mármore 

o meu pai cai de joelhos

e depois sobre o seu lado esquerdo

há um cheiro estranho no ar

eu grito

            mãe! 

o meu pai não fala ___ parece morto

o seu corpo expeliu o que estava 

a mais ___ o que o estava a matar

senti que era o fim do mundo

que mais tarde descobri ser pânico 


o meu pai morreu pela primeira vez

nesse dia

eu fui valente e não chorei 

o meu pai morreu a última vez 

quarenta anos depois

foi há muitos anos

eu fui valente e não chorei.



 

25 comentários:

  1. Como assim, não chorou? Se fosse eu morria junto com ele, mas, felizmente o meu está vivo e bem vivo, graças a Deus.

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    1. No meu tempo de jovem dizia-se "um homem não chora", e assim foi.
      Um abraço.

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  2. O Autor tem muitos traços (fisionómicos) do Pai.
    No resto, não sei...
    Só vim dizer-lhe isto.

    (sou a VOZ que fala em silêncio, sabe quem é? )

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    1. Estou de acordo com a avaliação da fisionomia.
      Não consigo ainda determinar este leitor que se assina A VOZ mas que também se diz Anónimo. Há mais anónimos por aqui, de vez em quando. Agradeço a atenção que dedica aos meus escritos.

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    2. Não tem de quê!
      E não, não me digo anónimo. Algo, ou alguém, me forçou a tal.
      Uma vez que o nome não o conduz a lado nenhum, obviamente, que será o mesmo que um anonimato disfarçado.
      Se lhe disser que a culpa é sua, fica a saber quem sou?

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    3. Tenho culpas de certas coisas na minha vida, (quem as não tem?) mas por essa via não chego ao lugar que deseja.
      Muito Obrigado pelo interesse.

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  3. Outros tempos em que um homem não devia mostrar emoções o que desde pequena não aceitava de jeito nenhum. Para mim não é nehum acto de valentia. Há quem chore com facilidade outros não mas não deve ter a conotação de tempos que nem quero recordar.. Uma foto muito bonita!
    Beijos e um bom domingo

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  4. Cobarde, porque seguiu as regras de uma sociedade idiota — e não chorou.
    Corajoso na velhice, escreve sobre um acontecimento terrível.
    O poema confirma o que eu sempre pensei sobre a causa da escuridão na sua poesia.
    A mesma escuridão que Paul Celan — e também sabemos o motivo.

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    1. Cara senhora, devia saber que a uma criança não se chama cobarde!
      Digo-lhe isto, porque sei que o autor jamais cometeria essa indelicadeza - no entender dele, claro.
      Assim, como expressar essa ideia de velhice...A senhora que idade tem?

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    2. Com 5 ou 6 anos não conhecemos os conceitos de cobardia ou até de valentia. Hoje interpretamos à luz da nossa experiência de vida.
      Não vale a pena zangarem-se, o autor faz da poesia um acontecimento em que os espíritos se elevam, a poesia não pode ser motivo de desentendimento. Agradeço no entanto à VOZ DO SILÊNCIO que, neste momento, falou alto para preservar o autor de qualquer desgosto.
      Um abraço a ambos os leitores.

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  5. Boa tarde Luís,
    Um poema íntimo que muito me emocionou.
    Demonstrou uma enorme força perante factos tão dramáticos na vida de uma criança e não só.
    Beijinhos,
    Emília

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    1. Um acontecimento que se repetiu mais duas vezes até ao derradeiro.
      Um abraço.

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  6. O pânico apodera-se do nosso coração, quando vemos aqueles que amamos, sofrer ou partir e cada um de nós, tem a sua própria forma de sentir e viver essa terrível dor.
    Um poema profundo que toca a nossa alma de leitores.
    Abraços

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  7. Na minha meninice era eu quem dizia a mim mesma que uma "mulher" não chora... Quando a minha segunda figura materna, a mãe do meu pai, morreu com apenas 61 anos, tive de engolir as palavras porque, às lágrimas, não as consegui engolir.
    Tocou-me profundamente esta primeira morte de seu pai, L.

    Forte abraço!

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    1. Hoje é difícil controlar as lágrimas nem que seja nos primeiros momentos de um concerto.
      Obrigado.
      Um abraço.

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  8. Quero pedir mil desculpas pela minha falta de tacto.
    Ainda há muito pouco tempo, aconteceu na minha família um caso idêntico.
    A filha encontrou o pai desmaiado no quarto de banho.
    Não chorou e chamou a mãe.
    Apesar dos seus seios anos, tem uma veia artística acentuada, mas desde esse dia, somente desenha com lápis preto. Nem mesmo no. Carnaval os seus trabalhos têm uma nuance colorida.

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    1. Um caso idêntico, pelos vistos.
      Por vezes a emoção tem de nós reacções inexplicáveis, compreendo-a, nada a perdoar, é positivo falar e deixar a sensatez
      revelar-se.

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  9. Foquei-me mais na resistência deste pai que se foi recusando a morrer, essa luz também o autor tem, não apenas a escuridão.
    Um abraço

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    1. Que gosto para o autor receber este seu comentário.
      Obrigado.
      Um abraço.

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  10. Perante este poema recolhi-me em mim mesma,
    sem.palavras. Dor assim não consigo comentar.
    Um.abraco
    Olinda

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  11. Caro Poeta/Pintor/Fotógrafo e Amigo
    Eu não fui valente, desfiz-me em lágrimas e achei que chorei tudo o que havia para chorar, mas depois levei mais de vinte anos sem verter uma lágrima que fosse.
    Só o voltei a fazer novamente, ao ler uma crónica do MST na revista Máxima. Na altura escrevi uma espécie de crónica e enviei para lá, foi publicada ao lado da foto do MST, o que muito me sensibilizou, ainda tenho a revista guardada.
    As lágrimas não lavam a dor que carrego comigo e que nunca consegui superar.
    Este poema comoveu-me até às lágrimas.
    Um abraço
    :(

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