como um nascimento
para o lugar de onde vim
e que reconhecerei à chegada.
A juventude é a memória
Diz-me em Setembro
que depois deste verão
ainda haverá outro verão
no mesmo lugar
e que todos estarão
connosco de novo
mesmo os que nos faltam
e que o desespero não será
uma palavra pronunciada
porque todos teremos tempo
para as despedidas
nada será imprevisto
ou doloroso
diz-me em Setembro
quantos de nós sobreviveram
diz-me que todos
voltaremos a encontrar-nos
ao cimo das escadas
daquele hotel barato junto à praia
para as despedidas do que será
o último verão
diz-me em Setembro
que as memórias ficarão
e que a nossa juventude foi
mil vezes um verão feliz
voltaremos a encontrar-nos
cinquenta anos depois
e não nos reconheceremos.
Fico assim
Sou espectador de mim próprio
assim sendo estou sempre comigo
debaixo d’olho
despenteio-me todos os dias
estou farto do cabelo alinhado
riscos no crânio sem utilidade
nem a beleza
nem o amor
nem a esperança
importam agora __ quanto mais
pentear-me todos os dias
nada altera a fome o frio a morte
com zelo e surpresa vigio-me e
não adormeço com medo de sonhar.
Apenas a chuva
Esperei a vida inteira
encontrar uma fonte
construí com as minhas mãos
uma concha de barro
para louvar as primeiras gotas
por agora viverei da chuva
à partida e à chegada
e o tempo vai passando
e eu a contá-lo
com a espera a concha de barro
regressou à terra
e eu com as mãos em concha
à recolha da chuva
é severo esperar uma fonte
que nos traga um poema
para nos matar a sede
e ter de beber a chuva.
Talvez seja possível inventar um poeta
em oito partes penduradas umas nas outras
Parte 8
o poeta inventado refeiciona fora de horas
e come sem regras saudáveis
passa muitas horas sem se alimentar
como um hibernador até fazer um intervalo
na leitura de um livro que lhe interessa
o poeta inventado inventa palavras
julga até que inventou uma vida
um dia o poeta inventado escreverá um poema
a que dará o título Autorretrato.
Talvez seja possível inventar um poeta
em oito partes penduradas umas nas outras
Parte 7
o poeta inventado sente-se capaz de escrever
para enganar a morte e tem conseguido
mas sente-se desleal para com os seus amigos
os mais novos que já morreram
enquanto ele continua ainda vivo
por isso o poeta inventado tem momentos
em que acha o suicídio inevitável
e pensa nisso durante minutos de introspecção
até ser interrompido pelo telefone
ou por crianças aos gritos na escada da sua casa
continua
Talvez seja possível inventar um poeta
em oito partes penduradas umas nas outras
Parte 6
o poeta inventado com espírito de poeta
teme seriamente que os seus poemas
sejam inúteis por serem um monte de papéis
que afinal ninguém quer e alguém mais corajoso
talvez uma nora um genro ou uma ex-amante
lançará no lugar certo da reciclagem
resolvendo esse assunto para alívio de todos
é sempre uma decisão difícil matar assim
um poeta
ou melhor
matar a sua obra o que é ainda pior
continua
Talvez seja possível inventar um poeta
em oito partes penduradas umas nas outras
Parte 5
por isso continuará a sofrer com empenho
ele enviará com timidez alguns exemplares
a outros poetas que nunca acusarão a recepção
com excepção de um o que moderou a sua frustração
sente-se embaraçado quando lhe chamam poeta
os seus poemas são textos ___ como ele diz
e são textos que instigam a polémica
o que faz dele alguém que não é bem vindo
continua