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Eu sou o da bandeira vermelha
eu sou o da boca pequena ___
___ sem lábios 
eu sou o que não tem mais nada
para dizer 
eu sou o que caminha na ponte
sobre águas turbulentas
eu sou o que anotou a vida
num caderno sem linhas
eu sou o que tem tudo guardado
dentro de uma caixa antiga
eu sou o que te perdeu de vista
eu sou o da bandeira vermelha 

encontra-me! 



Foto de Daniel Filipe Rodrigues 


 


Foto do autor do texto



Não vos digo deste cansaço 
que já tenho na voz 
tenho má memória 
esqueço nomes
lugares
acontecimentos
mas a minha imaginação 
ainda ferve

pelo meu cansaço na voz 
tudo no outro lado de mim
é violência 
insultos
desprezo
assassinato do outro
suicídio lento com sangue
deste lado de mim

em tudo penso com as mãos 
arrumadas sob os lençois
até me trazerem
uma sopa quente.


 


Imagem criada por Filip Rodrigues 
e fotografada por Daniel Filipe Rodrigues



Ninguém falava
na verdade ninguém 
tinha nada para dizer
ou o medo impedia as vozes
até que alguém ousou
e uma voz de homem disse
     mulher
um rumor em coro
ocupou o espaço todo 
depois todos se calaram
uns aos outros

ninguém dizia nada
na verdade ninguém 
tinha nada para dizer
ou o medo impedia as vozes
até que alguém ousou
e uma voz de mulher disse
     homem
um rumor em coro
ocupou o espaço todo 
depois todos se calaram
uns aos outros

eram mil
e mil
e mil
e muitos mais
homens e mulheres
num rumor sempre controlado
por homens e mulheres
o medo impedia as vozes

um homem e uma mulher
que não estavam na multidão 
disseram para o seu filho
     isto é o mundo.


 

Foto do autor do texto tomada do documentário VIDA SELVAGEM



Tenho as minhas camisas 
que se agitam no estendal
com o vento que não pára 
estão prisioneiras
são cegas e
falta-lhes o corpo
são braços a acenar
como se te chamassem.







A loucura é apenas uma teoria
uma definição ou um momento
onde nasce um poema 
a loucura é um lugar amplo
que cabe dentro de uma palavra 
a loucura é um caminho de luz 
que cabe numa oração 
que cabe num desejo 
a loucura são uns lábios 
a abraçar os nossos lábios.


 





Meio

Com um pretexto 
talvez com um desejo
mas era certamente um apelo
para que viesses ao meio-dia
virias então a meio da minha vida

sempre incerto o teu sim contra o qual
não tinha meio de te convencer 
quando recusavas com meias desculpas
o afago meio louco
das nossas cicatrizes 

quando sabia que virias
deixava tudo a meio
e preparava mesa e cama que
me punha meio inquieto ___ radiante
vestido de branco

deveria ter feito um esforço 
para deixar de ser meio inseguro
e confessar-te tudo
sem meias palavras mostrando-te
a nossa fotografia antiga 

e vinhas no teu vestido preto
rosto em vermelho meio sangue meio fogo
com o coração íngreme 
a coser os dias com palavras 
como retalhos meio gastos ___ sei-o agora 

naquele tempo ainda fumavas
os cigarros até meio
quando chegavas o fogo via-te o rosto 
apenas meio iluminado
os lábios fumegando

para te receber eu trazia
nos bolsos sob a pele músicas
meio melodias ___ meias cantatas
disseste
vou ser moderada
a minha verdade não tem nomes
não quero compreender o passado

tu de vestido preto
eu de camisa branca
abraçamo-nos com calor ___ longamente 
meio preto meio branco
numa imagem única 
como dois pandas sentados.


 


Foto do autor do texto


Nem sempre o que se diz
é o que o coração pensa

No café da manhã 
é onde elas se confessam
umas às outras sem rebuço
no intervalo das compras

eu homens não quero mais nenhum
diz uma
desde que o meu Abílio se foi
estou melhor assim
que deus me perdoe
diz outra
amores? não quero mais… chiça
diz a mais desbocada

na mesa do outro lado sentam-se 
o lojista da retrosaria
com o dono da ourivesaria 

um destes ___ sim
era o que me convinha
diz a mais desbocada
as outras dizem que sim com a cabeça 
e sorriem. 


 






Exploro o círculo 
como uma arena
como uma prisão 
como uma cratera
como um lago 
 
serei um artista confuso
habito uma casa sem porta
para não perder nenhuma
das minhas luas em círculo  
 
mas canto
e o meu hino tem palavras 
em círculo. 


 


Foto do autor do texto tomada do documentário VIDA SELVAGEM



O terror é coisa humana
são lascas da nossa carne espiritual
em sangue
são as pernas a fraquejar
como se já não tivéssemos pernas
é a viagem que não queremos fazer
mas o silvo do comboio
obriga-nos a ir para longe
é o aleijão no corpo do dia
como se fosse definitivo
são as vagas no mar muito alto
que nos engolirão um dia
o terror é coisa humana
vem ___ tapa-me os olhos. 



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Aníbal Alcino

1926 - 2024



Foto do autor do texto



Este foi o último erro da minha vida
como se todo o tempo
tivesse estado à espera
do pedaço de queijo na ratoeira
 
as ideias antigas deixam-me saudades
e sangue na boca
que engulo com as palavras inúteis
enquanto ainda escrevo 

ocupado em escrever romances de amor
esqueci-me do próprio amor
este foi o último erro da minha vida
fiquei imóvel a ter ideias.


 


Foto do autor do texto



Conquista

O amor é um campo de batalha 
que se conquista palmo-a-palmo
em sucessivos duelos a golpes de ternura
até à rendição. 




Foto do autor do texto


Nega-se o sol na boca do Outono
a difícil aceitação 
da transformação da luz
com a chegada do medo
o escuro que Goya inventou
a trágica camisa branca
no lugar do corpo
e a boca do Outono a mandar
no destino ___ no sol

não sei se é por ser Outono 
mas há um navio abandonado
na boca do Inverno.


 



Foto do autor do texto



Viagem pelo corpo

Deslizo pelos teus braços 
sem tocar a tua pele
vejo um espaço iluminado
dentro do teu peito
e a sombra de dois seios 
que conheço 
encontro o teu ventre florido
cor e céu 
e duas pontes de pele rosa
que passam do teu mundo
para o outro
onde se perde o meu desejo
a seguir tudo é deserto ___
___ gelado. 


 

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António Sena
1941 - 2024

Foto de jornal O MINHO