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Chego a casa
sento-me no meu cadeirão do costume
acendo duas velas
ponho a tocar um trecho de saxe
meio jazz meio balada
está frio
cubro os joelhos com uma manta
verde padrão tipo escocês 
pego num álbum de fotografias 
que está na mesa ao meu lado
e folheio-o 
Pai muito direito a fumar
Mãe a rir despenteada pelo vento
eu pequeno no campo sobre um burro
as minhas irmãs com chapéus de palha
pequenas e iguais
o nosso gato cinzento a dormir
todos ___ sempre todos
no quintal da nossa casa
depois no terraço da outra casa
ou na praia à sombra dos barcos dos pescadores 
daqueles com um bico apontado para o céu 
nós pequenos
e maiores
e ainda maiores
depois ___ várias folhas sem nada
no fim do álbum 
um pequeno ramo de folhas secas
uma relíquia do casamento dos meus pais
todos chegaram ao fim

a música chegou ao fim
sopro a chama das velas
apago a luz
e adormeço ali mesmo
com o passado ao colo.


 


18 comentários:

  1. Essa tal nostalgia _ guardada em detalhes e solta no poema.
    Gosto disso L , suas reminicências ... quase um lamento .
    'No fim do álbum , ' folhas sem nada.' ... É ssim que sempre termina.( com o passado no colo).
    abraço de boa noite e saúde .

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    1. Há momentos em que a nossa amarra à vida é revisitar o nosso passado.
      Muito Obrigado.
      Um abraço.

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  2. Há dias em que percorrer o passado faz todo o sentido... principalmente quando o hoje é agressivo...
    Beijos e abraços
    Marta

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    1. O seu comentário, com o qual concordo, sugere-me o mesmo que eu disse no comentário anterior "Há momentos em que a nossa amarra à vida é revisitar o nosso passado."
      Um abraço.

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  3. Não adormeci com o passado ao colo.
    Acordei a olhar para a folha em duas partes (latim: biloba) de uma árvore de ginkgo, e recordei o poema que Johann Wolfgang von Goethe escreveu aos 66 anos, é dedicado ao seu amor tardio, Marianne von Willemer. Devido à sua forma, representa a folha de ginkgo como um símbolo de amizade.

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    1. Com efeito, foi sobre esta folha que Goethe fez o poema que cita, no entanto a reprodução da folha de papel em que o Poeta escreveu o poema, mostra duas folhas de Gingko Biloba com um formato algo diferente da que eu reproduzo, a folha em que Goethe se inspirou sugere realmente que são duas folhas unidas. No entanto a símbologia mantém-se.

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    2. É absolutamente correcto que a folha em que Goethe se inspirou são realmente duas folhas unidas.
      A folha que eu trouxe de Weimar é exactamente igual à da folha da fotografia.

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  4. Uma maravilha de poema que gostei muito na visita ao teu passado numa descrição gostosa. Eu ao contrário do poeta raramente o faço e não sei dizer-te a razão! Obrigado por este belo momento de leitura!
    Beijos e um bom dia

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    1. O passado é uma referência e a parte de nós que existiu.
      Bom dia.
      Um abraço.

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  5. Recordar un pasado mientras se pasan las hojas de un album de familia, es revivirlo y, al mismo tiempo, despertar la añoranza que siempre estará latente en nuestros corazones cuando ya se han ido.
    Entre las hojas de cada libro, siempre encontraremos un recuerdo, bonita tu foto .
    Ha sido un placer conocer tu espacio.
    Cariños.
    kasioles

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    1. Agradezco este primer comentario tuyo.
      Los registros fotográficos son también los lugares donde fuimos incluidos. Cuando hojeamos estos álbumes, revivimos momentos que nunca se desvanecerán.
      Un abrazo.

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  6. Admiro a las personas que tienen el don de la música y toca algún instrumento.
    Un abrazo

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    1. También pienso que la profesión más maravillosa es ser músico.
      Un abrazo.

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  7. um album de fotos
    um legado do passado
    as memórias
    o recordar ... que poema tão belo...

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  8. Boa Noite Caro Poeta/Pintor e Fotógrafo

    Este poema é uma ode ao rito íntimo de despedida, ao mesmo tempo resignado e sereno. A casa, o cadeirão e as velas formam o palco de um momento quase litúrgico, onde o protagonista celebra o passado como se folheasse uma prece visual. A escolha de um trecho de saxofone – jazz misturado com balada – já sugere um tom ambíguo, entre a melancolia e o consolo.
    O álbum de fotografias torna-se mais do que um objecto; é um portal para um tempo em que a vida tinha forma, cor e movimento. Cada página contém uma narrativa simples e universal: pais, irmãos, infância, momentos fugazes de alegria, de simplicidade. Mas, à medida que as folhas se esvaziam, o leitor é confrontado com o inescapável: o fim. A inclusão do ramo de folhas secas como último vestígio palpável do amor eterno dos pais acentua a fragilidade e o peso da memória.
    E então o poema fecha-se, como o álbum, com a música que acaba, as velas que se apagam e a luz que se esconde. Tudo termina em silêncio, excepto o passado, que permanece, quase fisicamente, "ao colo" daquele que rememora.
    É um poema que fala da mortalidade sem medo, com uma aceitação quieta, como se cada detalhe – a manta, as folhas vazias, o saxofone – fosse parte de um ritual que transforma o fim em poesia. Fico na dúvida se esta análise do poema, estará correcta, mas, é apenas a minha análise, cada leitor terá a sua.
    Continuação de semana boa.
    :)

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    1. A sua análise está muito correcta, com todo detalhe, o seu texto é maravilhoso. Gosto muito da palavra "inescapável" que é o título de uma música das minhas eleitas https://open.spotify.com/track/0OFsqhYh2n6KY2jaiWdHaD?si=gstktx1QTliZA2Yi3sW7fA
      Muito obrigado.
      Um abraço.

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