Ouves o barulho do mar?
Um casal numa cama de cabeceira vermelha alta. Há luz fraca de dois pequenos candeeiros de cada lado da cama. Os dois estão sentados e encostados à cabeceira, o homem à esquerda da mulher mas distantes um do outro. Têm idades de mais de 60 anos (ele mais velho) e conversam. A iluminação da cena incide apenas no casal da cintura para cima, é apenas um círculo de luz. Há música de fundo (solo de piano).
Ele: Aguentei-me bem não achas?
Ela: Como sempre.
Silêncio
Ele: Até vejo estrelinhas a rebentar ___ de olhos fechados. E tu?
Ela: Eu não! Eu tenho é dores nas costas.
Ele: Isto ajuda-nos a sentirmo-nos joviais. Não achas?
Ela: Acho que sim, mas fico com dores.
Silêncio
Ele: Vê! É quase noite.
(A mulher pega numa revista que está ao seu lado e folheia-a)
Silêncio
Ela: (apontando para a revista) O príncipe agora quer ir para a América.
Ele: Tanta noite para tão pouco dia!
Ela: A rainha não dá conta daquela família.
(A mulher após ler a notícia, destaca a folha e lança-a para o espaço à sua direita)
Ele: Os nossos dias são como uma estátua assente numa base que é a noite.
Ela: Não estou a acompanhar a tua conversa.
Ele: A estátua está sujeita ao desgaste do tempo e ao vandalismo enquanto que a base se vai aguentando e por vezes até lhe põem flores em cima embora estas se destinem à estátua.
Ela: Diz aqui que vem aí um meteorito que vai passar perto da Terra.
(A mulher destaca a folha e lança-a para o espaço à sua direita)
Ele: Perto? A centenas ou milhares de anos-luz!
Ela: Ah! Já lêste a notícia!
Ele: Não!
Silêncio
(A música de piano é lentamente substituída por música de Dahfer Youssef)
Ela: A tua cama é confortável!
Ele: Já aqui moraste mas deixaste o lugar vago.
Ela: Vago não! Reservado!
Ele: Como nos transportes. (O homem com as duas mãos faz um gesto como se descrevesse um anúncio e diz) O "Transporte do Prazer"! (Pausa) Vens no horário desejado.
Silêncio
Ele: Gostas da música?
Ela: Sim.
Ele: É inspiradora.
Ela: Inspiradora para as tuas pinturas?
Ele: Também. A pintura é a componente de beleza da vida, como todas as artes.
Silêncio
Ele: Esta música também é inspiradora porque completa o conforto de estar aqui. (Pausa) Contigo!
Silêncio
(O homem continua a falar)
Ele: Porque depois do momento em que o desejo arrebata vem algo mais, que se instala em nós, no "depois de nós".
Ela: Eu também me sinto "mais descontraída".
(suspira e continua a folhear a revista).
A música volta lentamente ao solo de piano.
Ele: O que tu lês são palavras que usas e deitas fora.
Ela: São palavras iguais às que tu usas.
Ele: Iguais embora diferentes. Acredito no poder de decisão de uma palavra. Acredito, quando dizes "eu venho" que a noite não chegará antes de ti.
Silêncio
Ele: As palavras são uma procura, as palavras são um encontro.
Ela: Lá vem a filosofia. Não compliques!
Ele: Porque te procuro antes de me afogar, morro na tua boca, morro no teu silêncio.
Ela: Morres??
Ele: Ainda me fazes bater o coração em cada contracção, quando te amo. (Pausa) Ainda descerro as pálpebras para o desfrute do teu peito.
Ela: Isso é bonito mas complica tudo. Dizes "morrer" mas reconheces que o teu coração bate.
Silêncio
Ele: Repara! Estamos na mesma jangada.
(A música funde-se com o som das ondas)
Ele: Ouves o barulho do mar?
Ela: Não!
Ele: (insistindo) Ao longe! As ondas!
Ela: É a tua imaginação que não pára.
Ele: Pode ser que seja, mas eu ouço. (o homem repete com mais vigor) Estamos na mesma jangada!
(O homem leva a mão esquerda ao espaço ao lado da cama como se a molhasse e salpica a mulher)
Ele: Sentiste?
Ela: O quê?
Ele: (pondo a mão sobre o corpo da mulher) Fica aí! (Pausa) Mas agarra-te a mim!
O homem apaga a luz do seu lado. O foco de luz abre e vê-se a água que circunda a cama como se esta estivesse no mar.
O homem rebola para fora da cama, debate-se e desaparece nas águas.
Ouve-se o som grave e prolongado da sirene de um navio.

O diálogo do casal tem a temática do vídeo.
ResponderEliminarEle ouve o barulho do mar.
Ela o barulho da música de Dhafer Youssef.
Estão na mesma jangada — embora distantes para sempre.
A fotografia do Daniel Filipe reproduz extraordinariamente a relação cansada do casal.
Leitura atenta e interpretação pessoal que levo em conta.
EliminarBoa Noite, um abraço.
Interpretação pessoal.
EliminarNÃO experiência pessoal.
Sabe de que vídeo eu estou a falar?!
Sim, sei. Do vídeo "Como um pássaro pousado num quintal da cidade". A semelhança é por ser um diálogo entre um casal, embora no outro haja mais personagens.
EliminarA semelhança não é ser um diálogo entre um casal.
EliminarA semelhança são os conflitos entre o casal.
No vídeo é a filha que explica ao pai esses conflitos — isto é, as queixas de Angela.
Muito certa a sua observação, concordo.
EliminarOra Viva!
EliminarComo com pior fama do que a que já tenho por aqui, não devo ficar, e, isso até me é de todo indiferente, sem pedir permissão atrevo-me a imiscuir-me neste vosso diálogo pois quero que TODOS quantos por aqui passam também tomem conhecimento desta Peça em três actos que tive o prazer de ler e ouvir a sonoplastia, há já largos meses.
Depois, cada um dos seus leitores, que adopte a melhor opinião sobre a semelhança, ou não, com o texto actual.
Continuação de um bom Domingo!
Bom...domínios eu não quero, obrigada.
EliminarApenas a graça de um bom resto deste bonito domingo de sol. :)
Só lhe posso agradecer a publicidade, realmente, como publiquei esse texto quase no início do blog talvez tenha passado despercebido.
EliminarBom domingo também. Muito Obrigado.
Desculpe a gralha.
Pintor, poeta e agora dramaturgo?
ResponderEliminarGostei do suspense com que o diálogo nos vai envolvendo.
De novo um tríptico bem conseguido.
Parabéns por esses seus múltiplos talentos.
Boa noite.
Fico agradado por ter apreciado. O texto é mais longo que o habitual, temi que os leitores não tivessem paciência para o ler.
EliminarMereceu a sua atenção, obrigado.
Boa Noite
Nesse teatro
ResponderEliminaronde Molière se fez ausente
tento, sem conseguir
sentir-nos personagens
Entre nós não havia silêncios
E é curioso, em tantos anos
nunca lhe disse, por escusado
que a amava
O fim da peça
tu conhece-la
Apaga-se a luz do lado da mulher. O foco de luz abre e vê-se a água que circunda a cama como se esta estivesse no mar.
A mulher rebola para fora da cama, debate-se e desaparece nas águas.
Ouve-se o som grave e prolongado da sirene de um navio que vai ressoando enquanto o público vai abandonando a sala.
Fizeste uma leitura e um arranjo bem adaptado à tua experiência. Obrigado.
EliminarCriatividade e algo com pernas para andar
ResponderEliminarOstei
Hoje um texto com as pernas mais longas. Obrigado.
EliminarEis a perfeita descrição de uma mais do que inevitável catástrofe, L.
ResponderEliminarDesconhecia esta sua faceta de dramaturgo pela qual lhe dou os meus parabéns.
Forte abraço!
Uma experiência. Obrigado pelos parabéns.
EliminarUm abraço, bom domingo.
Com a música de Dhafer Youssef ao fundo, estou a visualizar toda a cena.
ResponderEliminarO desfecho inevitável e dramático de uma relação desgastada pelo tempo, pela vida.
O meu aplauso!
Um abraço e boa semana !
Comentário muito objectivo, agradeço o seu incentivador aplauso.
EliminarBoa semana, Um abraço.
Diálogo interessante entre dois amantes, já anteriormente íntimos. Bonita foto e boa música !
ResponderEliminarObrigado por ter vindo, agradeço a sua paciência para ler o texto, maior do que o costume.
EliminarOs textos, principalmente os poéticos são sempre difíceis de comentar, e nem sempre me habilito a fazê-lo. Acredito que muita poesia possa ter uma interpretação diferente de leitor para leitor e certamente muitos deles não acertam com a leitura do poeta.
EliminarGosto, no entanto, de passar por aqui, para ler aquilo que escreve.
Fico sensibilizado com a simpatia do seu comentário. Todas as interpretações são legítimas e enriquecem a publicação. Fico grato pelas suas visitas.
EliminarISN
ResponderEliminarUm comentário algo pateta, daí ter sido feito sob anonimato.
EliminarO passar do tempo tudo desgasta, até as palavras.
ResponderEliminarLuis, poeta e prosador, gostei deste longo e arrevessado diálogo. E da imagem, pois então!
Beijo, boa semana.
Muito simpático o seu comentário, muito compensador para quem publica.
EliminarFico reconhecido.
Boa semana, um abraço.
Caro Poeta
ResponderEliminarpode ser surreal mas acho-o demasiado real
os anos passam e algo se vai degradando
mas li com atenção e achei tudo isto muito criativo embora um pouco triste
é a vida!
beijinho
:)
Essa é a realidade. Não controlamos o tempo e a sua acção, não somos todos iguais.
EliminarUm abraço.