Foto do autor do texto a partir do documentário
 "Quando os impressionistas quiseram pintar as paredes". 




 

Memórias

 

Poderia talvez escrever as minhas memórias 


Não daqueles diários belos e tranquilos 

em que tudo está certo 

com infâncias felizes e uma vida abastada 

com histórias bem dispostas de famílias grandes

coniventes e bem sucedidas 


Poderia talvez escrever as minhas memórias 


Mas em páginas nada belas nem tranquilas 

com tempos e lugares errados 

com uma infância assassinada 

com mosaicos de atitudes e decisões falhadas 

e com pedras em falta que estragaram o desenho final 

com noitadas impuras vividas à luz do dia 

e muitos corpos dissolvidos em fogos 

que explodiam à mínima falta de paciência 

louça suja 

copos vazios 

camas desfeitas 

mãos desencontradas e unhas roídas 

árvores de natal nunca acabadas

correrias e chegadas sempre tardias

foices perdidas na ceifa

Histórias que encheriam páginas  

com a vertigem da velocidade 

de um comboio desgovernado 

desobedecendo a todos os sinais da prudência 

colhendo quem se cruzava  

na passagem sem guarda 

no tempo incerto


Pior ___ talvez o Diário Remendado do Pacheco


Escreverei sim sobre a vida em pequenas doses 

para que não nasça de repente e irreversível 

toda a crueldade das palavras.




 

 

20 comentários:

  1. Poema forte, profundo, belíssimo!
    Em pequenas doses o poeta desabafa, espanta e encanta.
    Será?!
    Beijo.

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    1. O autor agradece a paciência e a atenção. O autor mistura o real e o imaginário, mistura o que pode.
      Um abraço.

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  2. O poeta ama saborear as suas memórias, mesmo quando essas memórias não são belas e tranquilas.
    Mas quem quer ler as tediosas memórias de infâncias felizes❓
    O poeta mergulhou novamente nas noites impuras do passado longínquo … e escreveu algo de magnífico.

    A cadeira de criança é o testemunho das noites de orgia dos impressionistas franceses.

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  3. Esplêndido poema, L.!

    Como Luís Pacheco, opta por escrever em pequenas doses "para que não nasça de repente e irreversível/toda a crueldade das palavras".
    Quase todos nós, poetas, o vamos fazendo e eu, tal como Pacheco, conheci a Fome em determinada altura da minha vida, embora tivesse tido uma infância privilegiada. Mas nunca escreverei as minhas memórias e aquilo que trago literalmente Remendado é o coração.

    Forte abraço!


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    1. Mais uma para o grupo, tudo em pequenas doses para que seja suportável.
      Um abraço.

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  4. A ductilidade entre a dor e o amor...
    Impressina-nos sempre!
    Em ambos registos.
    Faz Bem à sua Alma escrever e a todos nós o ler...
    Deixo-lhe uma música para o fazer um pouco mais Feliz:
    https://www.youtube.com/watch?v=0lhetFOJ5IE

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    1. O autor sente-se compensado quando um leitor sugere que a leitura feita aqui "lhe faz bem à alma"
      Ouvirei a música
      Obrigado.

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  5. E ainda estas músicas, que têm tanto significado para mim!
    Espero que aprecie.
    https://www.youtube.com/watch?v=FzmElxZ3pNk

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  6. Se eu puder evitar que um coração se parta,
    Eu não terei vivido em vão;
    Se eu puder evitar a agonia duma vida,
    Ou acalentar uma dor,
    Ou assistir um desfalecido melro
    A voltar a seu ninho,
    Eu não terei vivido em vão.
    Emily Dickinson

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  7. Puede que al escribirla, te libere del peso que llevas dentro.
    Besos.

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  8. Um poema muito intenso que me reporta para as minhas memórias, diferentes mas igualmente sofridas.
    Abraço, saúde e bom domingo

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    1. As nossas memórias são uma grande fonte de inspiração.
      Um abraço. Bom domingo.

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  9. Gostei bastante!:))

    Beijo. Bom fim de semana.

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  10. Intenso, com um bom guião até daria um bom filme.
    A minha talvez nem com um bom guião, seria talvez insonsa e no final ninguem morria, iam todos voar sobre o mar. como as gaivotas.
    :)

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