O encontro anual
Abro a porta da minha casa aos amigos
aos amigos longínquos
terei na mesa a velha toalha de linho
que foi da minha mãe
toda branca com um coração bordado
em cada canto
terei um bolo grande com frutas cristalizadas
e açúcar em pó
terei chá da proveniência mais exótica
que encontrar talvez Teekanne
que contém flor de lótus
falamos do nosso passado
das histórias comuns
com mais pormenores metidos a propósito
para terem mais cor
falamos alto e todos ao mesmo tempo
para nos sentirmos acompanhados
afinal pertencemos à vida uns dos outros
mas quanto mais velhos somos
mais triste é a amizade
cantamos algumas daquelas canções
revolucionárias de quando pensávamos
que o socialismo estava já ali
acreditamos todos que a poesia
é que nos salva porque todos somos poetas
ainda que só uns escrevam
e outros ouçam
falamos das nossas mães
e menos dos nossos pais
talvez saudades do colo
falamos das nossas mulheres
com respeito mas com mágoa
e rimos alto das nossas canalhices
contamos uns aos outros
os pequenos desgostos quotidianos
descobrindo que são quase os mesmos
para todos
o carro que já anda agoniado de velho
os tectos da casa com desenhos da humidade
os preços de tudo a provocarem a nossa reforma
falamos da campanha de África
onde formámos o nosso grupo
chamavam-nos os “meia-duzia”
e nas confraternizações com os pretos
encostavamos a arma à parede
e esgrimiamos com cervejas
Abro a porta da minha casa aos amigos
aos amigos longínquos
quando nos despedimos e marcamos novo encontro
não sabemos se um ano depois
ainda seremos “meia-duzia”
e por isso abraçamo-nos longamente
para passarmos energia uns aos outros
depois são as vozes deles longínquas
as memórias a tornarem-se longínquas
a amizade a permanecer longínqua
a esperança
o amor
o desejo
tudo longínquo
para que não se esqueçam de mim
enviarei a todos pelo correio
um postal a dizer
As árvores pedem ao vento
que as ajude a falar.

Poema único, porque é um poema representativo de uma existência, melhor, de uma síntese de existências.
ResponderEliminarMuito bem classificado, nem eu tinha feito essa reflexão.
EliminarE que bom é! Descreve muito bem essas reuniões, desejo que continuem a ser ainda muito tempo "meia dúzia". E que a voz não vos falte nem morra nas gargantas.
ResponderEliminarA voz vai-se tornando mais lenta mas mais colorida.
EliminarUm abraço.
ResponderEliminarSó agora compreendi porque razão os poetas, alguns poetas, enviam postais pelo mundo afora.
Tal como as árvores precisam de apelar ao vento que lhes dê voz, os Poetas necessitam do eco de outras vozes, para continuar a desbravar o seu caminho feito de palavras...Afinal, os Poetas, todos os Poetas, são um misto de deuses fortes e humanos frágeis.
Este comentário é luminoso no que tem de compreensão deste desígnio de quem se meteu a viver com as palavras.
EliminarMuito Obrigado.
As árvores pedem para também elas voarem, mantendo sempre as suas raízes bem seguras.
ResponderEliminarMuito bonito,
Beijinhos, https://chicana.blogs.sapo.pt/
Compreendo a importância que o vento tem para si depois de entrar no seu blog.
EliminarMuito Obrigado.
Um abraço.
Essas confraternizações são sempre agradáveis para reverem e ou verem coisas e presenças do passado! Depois vem a nostalgia . Agendam um novo encontro e se se realizar faltará sempre alguém e aí "As árvores pedem ao vento que as ajude a falar."
ResponderEliminarA foto leva-me ao quintal do meu irmão onde numa parede fez várias gaiolas como essas para os pássaros "sem abrigo" :)
Adorei este momente de leitura e obrigada poeta!
Beijos e um bom dia
Milhares de encontros destes, sem história, acontecem por esse mundo fora.
EliminarBom Dia.
Um abraço.
Boa tarde Luís,
ResponderEliminarUm poema brilhante em que as memórias do Poeta falam mais alto!
Gostei imenso.
Beijinhos,
Emília
As memórias são como ver um filme da vida.
EliminarUm abraço.
Uma síntese de existências, como diz a Teresa Hoffbauer.
ResponderEliminarE este "encontro anual" poderá representar tantos outros
por esse mundo fora... Há sempre uma guerra para recordar,
o conforto do colo da mãe, a idade que avança inexoravelmente.
Um abraço
Olinda
Um acontecimento comum que une várias pessoas.
EliminarUm abraço
VENTANA DE FOTO deixou um novo comentário na mensagem "":
ResponderEliminarSiempre es una agradable motivo entrar y visitar tu casa.
Un abrazo.
Sería lindo poder darles la bienvenida a todos mis amigos.
EliminarUn abrazo.
Caro Poeta/Pintor/Fotógrafo e Amigo!
ResponderEliminarPoema ímpar, tão bem escrito e tão imemorável que me levou às lágrimas.
Faz parte de um passado bem real e não deslembrado.
Faz parte da reunião entre velhos amigos, e as conversas até podem ser as mesmas, mas é sempre uma confraternização, e uma saudade que vão colmatando.
Gostei deveras.
Boa semana.
:)
Muito obrigado, a emoção dos meus leitores é um elogio para mim.
EliminarUm abraço.
“quanto mais velhos somos
ResponderEliminarmais triste é a amizade”
Belíssimo e comovente poema, Luis.
Esses encontros mantêm-nos firmes e de pé, como as árvores.
Tenho um marcado com amigas, para Fevereiro. Vou lembrar-me deste poema.
Beijo.
Vivemos no convívio com os outros aquilo que já vivemos.
EliminarUm abraço.
Luís, estive a ler os seus poemas... Dou-lhe os meus parabéns
ResponderEliminarpor ter conseguido um estilo muito interessante e a excelência.
Vou levar o seu link.
Também é artista plástico?
Talvez queira espreitar o meu blog de poesia... Sou amadora...
Lamento ter começado tarde. Tive uma vida profissional difícil.
https://refugiodospoetass.blogspot.com/
Um abraço
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Encontrei finalmente este seu comentário.
EliminarAgradeço a simpatia.
Um abraço.