Foto de Daniel Filipe Rodrigues



O encontro anual


Abro a porta da minha casa aos amigos

aos amigos longínquos

terei na mesa a velha toalha de linho

que foi da minha mãe 

toda branca com um coração bordado

em cada canto

terei um bolo grande com frutas cristalizadas

e açúcar em pó 

terei chá da proveniência mais exótica 

que encontrar talvez Teekanne

que contém flor de lótus


falamos do nosso passado

das histórias comuns

com mais pormenores metidos a propósito 

para terem mais cor

falamos alto e todos ao mesmo tempo

para nos sentirmos acompanhados

afinal pertencemos à vida uns dos outros

mas quanto mais velhos somos

mais triste é a amizade


cantamos algumas daquelas canções 

revolucionárias de quando pensávamos 

que o socialismo estava já ali

acreditamos todos que a poesia 

é que nos salva porque todos somos poetas

ainda que só uns escrevam 

e outros ouçam 


falamos das nossas mães 

e menos dos nossos pais

talvez saudades do colo

falamos das nossas mulheres

com respeito mas com mágoa 

e rimos alto das nossas canalhices

contamos uns aos outros 

os pequenos desgostos quotidianos

descobrindo que são quase os mesmos 

para todos

     o carro que já anda agoniado de velho

     os tectos da casa com desenhos da humidade 

     os preços de tudo a provocarem a nossa reforma


falamos da campanha de África 

onde formámos o nosso grupo

chamavam-nos os “meia-duzia” 

e nas confraternizações com os pretos

encostavamos a arma à parede

e esgrimiamos com cervejas


Abro a porta da minha casa aos amigos

aos amigos longínquos 

quando nos despedimos e marcamos novo encontro 

não sabemos se um ano depois

ainda seremos “meia-duzia” 

e por isso abraçamo-nos longamente

para passarmos energia uns aos outros


depois são as vozes deles longínquas

as memórias a tornarem-se longínquas

a amizade a permanecer longínqua 

a esperança 

o amor

o desejo

tudo longínquo 

para que não se esqueçam de mim

enviarei a todos pelo correio

um postal a dizer

     As árvores pedem ao vento

     que as ajude a falar.



 

22 comentários:

  1. Poema único, porque é um poema representativo de uma existência, melhor, de uma síntese de existências.

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  2. E que bom é! Descreve muito bem essas reuniões, desejo que continuem a ser ainda muito tempo "meia dúzia". E que a voz não vos falte nem morra nas gargantas.

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    1. A voz vai-se tornando mais lenta mas mais colorida.
      Um abraço.

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  3. Só agora compreendi porque razão os poetas, alguns poetas, enviam postais pelo mundo afora.
    Tal como as árvores precisam de apelar ao vento que lhes dê voz, os Poetas necessitam do eco de outras vozes, para continuar a desbravar o seu caminho feito de palavras...Afinal, os Poetas, todos os Poetas, são um misto de deuses fortes e humanos frágeis.

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    1. Este comentário é luminoso no que tem de compreensão deste desígnio de quem se meteu a viver com as palavras.
      Muito Obrigado.

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  4. As árvores pedem para também elas voarem, mantendo sempre as suas raízes bem seguras.
    Muito bonito,
    Beijinhos, https://chicana.blogs.sapo.pt/

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    1. Compreendo a importância que o vento tem para si depois de entrar no seu blog.
      Muito Obrigado.
      Um abraço.

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  5. Essas confraternizações são sempre agradáveis para reverem e ou verem coisas e presenças do passado! Depois vem a nostalgia . Agendam um novo encontro e se se realizar faltará sempre alguém e aí "As árvores pedem ao vento que as ajude a falar."
    A foto leva-me ao quintal do meu irmão onde numa parede fez várias gaiolas como essas para os pássaros "sem abrigo" :)
    Adorei este momente de leitura e obrigada poeta!
    Beijos e um bom dia

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    1. Milhares de encontros destes, sem história, acontecem por esse mundo fora.
      Bom Dia.
      Um abraço.

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  6. Boa tarde Luís,
    Um poema brilhante em que as memórias do Poeta falam mais alto!
    Gostei imenso.
    Beijinhos,
    Emília

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  7. Uma síntese de existências, como diz a Teresa Hoffbauer.
    E este "encontro anual" poderá representar tantos outros
    por esse mundo fora... Há sempre uma guerra para recordar,
    o conforto do colo da mãe, a idade que avança inexoravelmente.
    Um abraço
    Olinda

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  8. VENTANA DE FOTO deixou um novo comentário na mensagem "":

    Siempre es una agradable motivo entrar y visitar tu casa.
    Un abrazo.

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    1. Sería lindo poder darles la bienvenida a todos mis amigos.
      Un abrazo.

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  9. Caro Poeta/Pintor/Fotógrafo e Amigo!
    Poema ímpar, tão bem escrito e tão imemorável que me levou às lágrimas.
    Faz parte de um passado bem real e não deslembrado.
    Faz parte da reunião entre velhos amigos, e as conversas até podem ser as mesmas, mas é sempre uma confraternização, e uma saudade que vão colmatando.
    Gostei deveras.
    Boa semana.
    :)

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    1. Muito obrigado, a emoção dos meus leitores é um elogio para mim.
      Um abraço.

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  10. “quanto mais velhos somos
    mais triste é a amizade”
    Belíssimo e comovente poema, Luis.
    Esses encontros mantêm-nos firmes e de pé, como as árvores.
    Tenho um marcado com amigas, para Fevereiro. Vou lembrar-me deste poema.
    Beijo.

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    1. Vivemos no convívio com os outros aquilo que já vivemos.
      Um abraço.

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  11. Luís, estive a ler os seus poemas... Dou-lhe os meus parabéns
    por ter conseguido um estilo muito interessante e a excelência.
    Vou levar o seu link.
    Também é artista plástico?
    Talvez queira espreitar o meu blog de poesia... Sou amadora...
    Lamento ter começado tarde. Tive uma vida profissional difícil.
    https://refugiodospoetass.blogspot.com/
    Um abraço
    ~~~~

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    1. Encontrei finalmente este seu comentário.
      Agradeço a simpatia.
      Um abraço.

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