A visita anual

Quando vos espero
desembaraço-me dos meus afazeres, 
ponho a mesa com tudo aquilo de que gostam, 
faço as camas com os vossos lençóis de sempre, 
faço a barba e visto a melhor roupa. 

Depois é querer agarrar o passado
sem que ele nos caiba nas duas mãos. 
Calam-se muitas palavras na garganta
mas falamos muito para nos darmos a ideia
de que vivemos ainda na vida uns dos outros. 
E quando relembramos aquelas histórias da infância 
contadas mais uma vez já com retoques
para serem mais ternas e terem graça 
rimo-nos com aqueles curtos risos
que convivem com uma ou outra lágrima. 

Ouço as vossas vozes adultas mas agudas
como se fossem as do passado. 

Oculto o desejo inconveniente de vos sentar nos meus joelhos
e ao falar no que me falta viver logo o tumulto gerado
cala a seriedade da minha confissão, do meu temor
como se quisessem manter a surpresa da última visita. 

Chega o momento dos abraços e dos beijos
os projectos de regresso que todos sabemos 
que não sabemos quando
ou talvez um ano depois como de costume. 
Fica então o silêncio, ficam as fotografias, 
as camas desfeitas, o resto das migalhas sobre a mesa
e um grande vazio que não mais será preenchido.



10 comentários:

  1. Tivesse eu a arte e engenho necessários, seria este o poema que escreveria e dedicaria aos meus filhos.

    Alguns conseguem, outros não!

    E mais não digo. Não sei se me entenderá.

    Fique bem.



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  2. Que dedicatória linda.
    Exala amor e compromisso.
    Gostei

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  3. Viva!
    Já lhe agradeci lá no meu Cantinho a sua magnífica participação (imerecida, devo dizer) no passatempo das quadras, mas, não resisto a vir bater-lhe à porta para lhe agradecer directamente. Muito Obrigada, de coração!

    Desejo-lhe um bom fim-de-semana.

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  4. Há uma clareza encantadora em seus versos. A cada ano, as transformações ficam mais evidentes e as palavras caladas só aumentam. De resto, só as lembranças da infância.

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  5. Há uma realidade pungente no seu poema.
    Faz lembrar a reunião de família pelo Natal.
    Onde todos os anos vem mais um e faltam algum que já partiu
    Está tão bem escrito que até comove.
    Um belo trabalho poético!
    :)

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    1. O poema canta uma realidade que advém da partida dos nossos filhos.
      Obrigado pelas suas carinhosas palavras.

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