Foto do autor do texto



Vontade própria 


Convocar a nossa morte

é um processo lento ___ suave

de crença e amor pela vida 

como ela é 

de respeito pelo ser humano

que somos ___ convictos

ainda que ambíguos

antes da vontade própria 

um sorriso confuso numa foto

a última 

um colarinho desapertado

um gesto frívolo no cabelo

e toda a vida se torna irrelevante 

no último assomo da vontade.



 

Foto do autor do texto tomada do canal Mezzo 



Fotografo-te

Fotografo-te

pedes-me um grande plano

e sorris

o projector ilumina as dores 

que trazes nos cantos da boca

ilumina

as tuas alegrias que trazes

no horizonte dos olhos


o teu rosto é música suave

que gravo em rectângulos de papel

sorri apenas ___ não fales

há amargura nas tuas palavras

e isso desfoca o grande plano.



 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Um corpo é o mundo


Rosado ventre onde o sol nunca se põe 

como se um corpo fosse a Terra

como se o corpo amado fosse o mundo

entre os seios exibem-se papoilas

o vermelho avançado de uma boca

tudo o mais para lá do corpo e da boca 

é espírito 

é história 

é a invisibilidade da paixão 

acabo de nascer de um ventre desconhecido 

é o início do tempo 

e tudo será aventura até o fogo nos tomar

porque tudo nasce e morre 

mesmo que o sol nunca tenha princípio nem fim.



 

Foto do autor do texto



O meu irmão espanhol


Adormeces os pés na mesma terra

onde os meus pés adormecem 

mas temos vontade de acordar 

e partir para o outro lado do mundo

ou para o olho do furacão 

a aventura é o fogo

nos nossos dedos indicadores

tens guardada uma armadura

do mesmo metal que a minha armadura

e guardas uma espada tão extensa

como a que eu trago à cintura

melancólica essa boca

a morder e engolir a mesma melancolia

cujo sabor trago na boca

somos filhos da mesma mãe 

e da mesma emoção nascida 

nas cordas de uma guitarra marginal


meu irmão espanhol

acorda-me quando o sol passar por aí 

aqui também ainda é noite

e hoje foi dia de amar uma sevilhana.



 

Foto do autor do texto tomada do canal Mezzo



Sem título 


Há uma vida toda no teu olhar

resignado mas em pânico 

e no teu silêncio eloquente

as tuas mãos pousadas esquecidas

na cova do teu ventre a dizer-nos

que ali nada se gerou a dizer-nos

que ninguém te espera

nem perto nem longe. 

Mesmo a luz e as paredes brancas

apenas te mantém na escuridão 

e no frio do chão 

onde já não pões os pés desistentes

___ é como se já fosses um anjo. 


E tudo isto se interrompe

com o riso vibrante de uma criança.



 

Foto do autor do texto



Nunca pelo mesmo caminho 


Não podemos regressar pelo mesmo caminho

as marcas que ficaram 

não coincidem com os nossos novos pés 

por isso não nos reconhecerão

e seremos presos à chegada.




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Maria Quintans


1955 - 2024





Foto do autor do texto


Escrevo com os olhos


Atravesso a parte mais fria

com um dedo apenas

lado a lado do teu peito

como o gume de uma faca

o lugar mais frio

é a parte do mundo

que trazes nas costas do teu peito

que é o lugar mais liso

da tua existência 


é aí que acomodo o meu caderno

e escrevo com os olhos

um poema sem palavras. 



 


Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Paixões 


As paixões são feitas 

de vácuo 

de brisas musicais 

de sorrisos como espasmos 


depois é o silêncio 

o desencanto

o choro oculto


não desejo a paixão 

mas reconheço 

que é um acontecimento 

de grande beleza.



 

Foto do autor do texto



Um dia


Apagaram os meus poemas

os meus futuros poemas

guardei no entanto

as palavras e as cores 

um dia

quando estiver sozinho 

e a salvo

volto à poesia

e então 

vou escrever poemas 

de todas as cores.