Foto do autor do texto



Aqui estamos ___ vivendo
com a esperança da nossa imortalidade
a correr pelas veias e músculos 
do nosso corpo que afinal envelhece
há manchas e rugas a fazerem
um desenho novo 
da nossa cara e das nossas mãos 
que é o que mostramos mais

falamos com as manchas e as rugas
dos outros
que não são comparáveis às nossas
que ainda são poucas e dizem pouco
sobre a verdade da nossa imortalidade 

entre as minhas rugas e as tuas rugas
há um tempo de peles lisas e rosadas 
e uma ave que canta 
entre as nossas palavras 
e assim 
aqui estamos ___ vivendo
com a convicção que um de nós 
será mortal. 


 


IA



Tenho uma vizinha austríaca 
mulher elegante
carrega nos erres
quando diz 
                             boa tarrrde 
 provoca uma brisa perfumada 
quando passa em passo firme
tem dálias vermelhas na varanda
e luz quente nas cortinas
 
estranhamente à noite escuto
uma voz de homem 
cantando Schubert
no quarto do sótão. 


 




 Foto do autor do texto



De cada vez que percebo
que te vais desnudar para mim
penso que definitivamente 
voltou algo idêntico ao amor 

talvez o amor seja isto
o que fica ___ mesmo depois do fim. 


 


IA



Somos muitos muitos mil
os de punhos tão fechados
que cravamos as próprias unhas
nas palmas das nossas mãos 
     e vamos pelo sonho
     e vamos pela música 
     que é a poesia cantada
     por sobre todas as fronteiras 
ainda somos muitos mil
a amassar o pão que ninguém amassou
nem deus nem o diabo. 


 


IA



Sentado numa cadeira antiga
com toda a carga de família 
tomo com as duas mãos 
as pernas frentes do suporte 
e fico a sentir em mim 
um apelo de morte 
uma estrela de fogo sai-te da boca 

não devias ter lançado fogo à tua casa
há também uma casa que arde em mim
foi tudo rápido na sua lentidão 
a madeira já arde
a mim incham-me as pernas adormecidas 
e eu assisto como sempre
a respirar ofegante sem voz

um corvo esvoaça rápido por entre o fumo
e grita na sua voz rouca
                                                             fujam! 
e tu foges. 



 

Foto de Ana Luís Rodrigues 



Chamam-me
mas por que nome? 
não importa
nunca sou o mesmo
o meu nome depende
do lugar onde me encontro. 




 

Foto do autor do texto 



Uma manhã levantei-me da minha idade
tinha acabado de acordar da náusea 
da compreensão do lugar onde cheguei
e fiz o saldo do meu tempo consumido

vivi todas as estações 
não caminhei em todas as cidades e
em algumas que caminhei perdi-me sempre
não aprendi a nadar nem a voar
não li todos os livros
surpreendi-me de punho erguido
estive sempre em casa ao entardecer
arrisquei procurar a luz ao fundo do túnel 
naufraguei e dei à costa em várias ilhas

depois deixei-me morrer ___ atento
como se estivesse a aprender 
algo de único e irrepetível 
mas
não tive tempo de perceber
se somos alguma coisa.


 


 

Foto de O Globo



O que diremos aos nossos filhos sobre as bombas
como explicaremos os amputados
como justificaremos os órfãos 
como lhes diremos que tudo aqui é obra nossa
seremos capazes de dizer aos nossos
que sabemos encher o corpo de felicidade
através da boca e dos olhos
através das mãos e do sexo
não esquecemos o zumbido das ruínas 
e os nomes dos que não voltaram
foi por medo
por ambição 
por cegueira

o que diremos aos nossos filhos quando 
perguntarem o que era o amor nesse tempo 
enquanto o mundo se consumia em chamas
então teremos a vergonha nos olhos
e diremos que éramos poucos 
mas lutámos até ficarmos velhos
em silêncio.


Foto de BBC



 

IA


Apresentas-te na tua importância 
sob um chapéu de abas largas
dourado de palha legítima 
como tripulante de um disco que voa
vindo do desconhecido do universo

como se eu acreditasse
que trazes voos na cabeça 
como tripulante de um disco que voa
___ aqui não há campos de aterragem
volta para o teu lugar longe no universo. 


 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues


Recolho-me no que parece uma gruta
em pleno descampado desabitado
um lugar em que as árvores se moveram
e se curvaram perante o silêncio
um túnel de sombra acolhe os passos
da água que se ilumina em fatias de luz
neste lugar o tempo respira lentamente 
e há um rumor surdo das pedras
uma brisa murmura coisas que esqueci

o meu corpo torna-se ausente
como se flutuasse no eco da terra
por um momento celebro o silêncio também.


 

IA





Deixaste sombras em todo o caminho 
levaste toda a luz
nas tuas mãos 
e nos teus pés
era ainda tão cedo
na sombra fiquei homem
num corpo de criança. 



 

Foto de Bartolomeu Rodrigues


Hoje foi um dia
em que os acantos não cresceram
em que a água saiu gelada da torneira
em que o telefone não tocou
em que me repeti com palavras rejeitadas

hoje levantei-me
e deixei o sonho na almofada
desconhecia o que o dia me destinava
preferi por isso começar tudo do princípio 
balouçar a vida numa corda
e dar à luz num lugar novo
enquanto ainda era dia. 


 



Gosto de estar sentado à tua mesa
gosto que dividas comigo o teu pão 
prefiro que me dês água em vez de vinho
gosto que digas o meu nome
com a tua mão na minha 
 
convenceste-me que o teu passado
foi o que sobrou da tua vida
e que já nem te lembras como foi
também estás velha
caiu o muro a leste e esquecemos tudo 
 
tenho pena de nós ___ já não temos tempo
para a clemência nem para a indignação 
anunciam-nos o fim do mundo
sem nos dizerem a verdade
estamos cansados
 
crescem-nos asas na voz e no olhar
a nossa casa é todo o mundo
por onde viajamos cantando
por agora dividimos o pão e comemos 
eu à tua mesa e tu à minha.





Marina Abramović e seu ex-amante Ulay, reencontraram-se 20 anos após a separação durante sua performance no MoMA em 2010, onde ela se sentou em silêncio por um minuto com cada estranho que se sentou à sua frente. Sem que Marina soubesse, Ulay apareceu e eles se olharam silenciosamente, capturando o impacto duradouro do amor, do tempo e da arte.


 


Depois de tantas palavras
é tanto o que fica por dizer

     ___ o mistério em nós 
     ou a falta de coragem? ___

pouco importa
com as dores
tudo será esquecido. 



Foto de Bartolomeu Rodrigues


Quando é o momento de te ter
é como se caminhasse da penumbra
em direcção ao lugar onde nasce o sol
caminhando
caminhando
caminhando
até ele se revelar
até ao êxtase da luz

e escrevo a luz em ti. 


 


IA



Há-de chegar o dia
em que te revelarás
e alguma coisa me pedirás

reservo-te
o meu último suspiro. 




Foto do autor do texto


A dormir sonhei
que levaram a minha boca à força 
e a puseram a dizer coisas
como se fosse eu ___
___ eu com a minha boca tão destreinada
na devastação verbal poderia lá 
insultar o mundo e esquecer o homem
escondo-me 
por entre os versos do Tolentino
enquanto espero que o tempo passe
e acreditem em mim

afinal isto é só a sonhar. 


 



IA



O amor é como um refrigerante
depois de aberto e não bebido
perde o gasoso. 



 

Foto do autor do texto



Não posso duvidar de que já nasci
e por muito que me digam
que isto não é vida
eu respiro e sei que respiro
porque o meu peito se move
e tu me falas
com eco na tua voz
com luz no teu contorno
e sangue na tua fronte
por te dizeres rei

tu me convences que já nasci
mas isto não é vida.


 


IA



Foi tarde a tua chegada
foi tão tarde que ceguei
como se não tivesses chegado nunca
ouvi-te apenas nas palavras escritas
páginas e páginas sonoras
sem música 
a que respondo agora 
no meio desta insónia 

e o que te digo é que
poderíamos 
ter sido amigos ou amantes
mas agora
crescem incertas as plantas
nascem duvidosas as flores 
por isso foi tarde a tua chegada
como se não tivesses chegado nunca 

neste momento
o que me preocupa é uma trivialidade
a arte de me pendurar numa gravata
e cego é mais difícil.