IA 



Pediste-me para te deixar viver um tempo
no meu imaginário 
e disseste-me isso enquanto caminhávamos
à volta do jardim curto do teu bairro
sentávamo-nos de vez em quando
para descansar as nossas falas 
e permitias que tocasse os teus seios 
ao de leve porque ainda era dia
e tínhamos o futuro desse dia
todo inteiro para nós 

e outra vez 

à volta do jardim curto do teu bairro
elogiavas a leveza dos meus passos
e o tom do meu silêncio 
assim como um incenso para que te deixasse 
viver um tempo no meu imaginário 
e eu disse-te que os teus seios
já estavam vivos no meu imaginário 
e que todos os dias dormia contigo
no meu corpo como se fosse o teu
e te homenageava solitário antes de adormecer 

e de novo 

sentados fizeste questão 
de tomar a minha cabeça no teu ombro
e disseste que bebias o perfume do meu cabelo
para que eu vivesse no teu imaginário 
da mesma forma como tu gostarias 
de viver um tempo no meu imaginário 

no fim do dia 

à volta do jardim curto do teu bairro 
sentados toquei os teus seios menos ao de leve 
porque já anoitecia
e combinámos viver no imaginário um do outro 
por uns tempos enquanto vivêssemos 
beijámo-nos nos lábios intimamente 
porque já era noite

tudo foi simples depois entre nós 
não mais voltámos a ver-nos. 



 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues


Os poetas deveriam ter o direito de morrer 
outra vez quando quisessem
sem violência 
os poetas deveriam ter o direito de nascer 
de novo quando quisessem
sem violência 
os poetas seriam assim como uma flor 
que se abre ao sol por vontade própria 
que o segue e que se fecha 
quando já não vale a pena
os poetas deveriam saber tocar piano 
sem nunca terem aprendido
e seriam capazes de transportar 
as sete oitavas na sua cabeça 
que tocariam em simultâneo com
a composição das palavras 

os poetas deveriam subir ao céu 
depois de completado um poema.


 


IA



Era uma manhã de sol
no parapeito da janela da sala de aula
duas borboletas combinaram distrair-me
um toque de ponteiro na cabeça 
faz-me voltar ao estudo da Tabuada Ratinho

muitos e muitos livros depois
enquanto faço as palavras cruzadas
dos anos que foram e dos que virão 
as mesmas borboletas me distraem
para eu me lembrar que estou vivo. 


 





Risco a giz sobre a mesa de madeira
um quadrado branco
desenho uma casa confinada
de tecto desigual

sempre quis contrariar a simetria

encho de outono a superfície 
sobre o silêncio da casa
avalio todo o espaço em volta
de traço em traço desconstruo a forma

sempre me tentou ir contra o desconhecido

concluo que não tenho mais nada a dizer 
e que não basta ter uma casa
não satisfeito com o resultado
alimento o fogo da lareira

isto também é o exílio. 


 




Não ames uma mulher 
com a mesma curiosidade
com que visitas um museu

por muitas visitas que faças 
nunca verás tudo
e não compreenderás 
arte com tanta diversidade. 



Foto de Daniel Filipe Rodrigues


Há um cais de onde parto ___
___ repetidamente 
um cais que desconheço 
em que país distante

mas é dali que construo 
a tristeza da partida
que me arde a saudade
dos que me acenam 

o cais é uma suposição 
de quem está sempre de partida
de lugares de que nem teve tempo
de saber o nome 

ou tudo é simbólico e inventado
e o cais é apenas a vida 
imóvel rodeada por um oceano
profundo e escuro

de repente o silvo de um navio
que parte lento
estremeço ao acordar
quando ouço o meu nome. 


 


Foto do autor do texto



Que fortes são as casas caiadas 
brancas como uma folha branca 
onde o tempo escreve em manchas 
o espanto dos homens 
os mais velhos guardam dentro delas 
a sua fidelidade à memória 
os mais novos guardam dentro delas 
as suas explicações para o espanto dos velhos 
como pedras complicadas 
que vão deixando pelo caminho
se tiverem de regressar 

dentro das fortes casas brancas 
os homens bebem e fumam 
e ajustam o corpo ao corpo das suas mulheres 
em gestos parecidos com o amor 
nas suas camas de ferro a rangerem 
as memórias dos antepassados 

os homens e as mulheres 
pintam de branco com cal as suas casas brancas 
ao domingo e comem as comidas simples 
que as suas mulheres inventam 
iguais às que já estão inventadas 
e bebem 
e fumam 
e cantam 
e dormem à noite cansados 

a infelicidade ronda agora 
os telhados das casas de cal 
ela veio ao chamamento dos homens 
que por engano cantaram 
o que lhes mandaram cantar 
e quando acordam e abrem as portas 
das suas casas brancas 
o mundo já é outro 

são fortes as casas antigas caiadas 
são brancas na cor das cores e resistirão
os homens velhos 
estão sentados a comer o tabaco 
em velhas argolas de fumo 
os homens novos 
talvez mudem o mundo outra vez. 

 

Foto do autor do texto


IA





Vai ver se chove! 

disseste com um gesto 
de quem me manda embora 

era o inverno dentro de ti. 





 

IA



Encontrei-te em frente a um copo de vinho
quando cheguei à tua mesa pedi um chá preto
disseste-me 
que os teus poemas estão a ficar velhos ___ 
___ que já não os conheces por desfigurados
que a poesia já não te respeita
houve silêncio quando levámos os copos à boca
o mesmo silêncio dos poemas que não escreveste
o meu chá ficou frio sem palavras
disse-te 
que havia beleza nos poemas esquecidos no armário 
onde guardas as recordações dos teus filhos 
mas respondeste 
que sabes que há palavras que não têm vida longa 
e morrem à nascença sem serem ditas

quando me despedi de ti deste-me um poema  
 
a poesia não é uma criação da imaginação 
a poesia é a vida que nunca imaginámos. 


 


 

Foto do autor do texto



Aqui estamos ___ vivendo
com a esperança da nossa imortalidade
a correr pelas veias e músculos 
do nosso corpo que afinal envelhece
há manchas e rugas a fazerem
um desenho novo 
da nossa cara e das nossas mãos 
que é o que mostramos mais

falamos com as manchas e as rugas
dos outros
que não são comparáveis às nossas
que ainda são poucas e dizem pouco
sobre a verdade da nossa imortalidade 

entre as minhas rugas e as tuas rugas
há um tempo de peles lisas e rosadas 
e uma ave que canta 
entre as nossas palavras 
e assim 
aqui estamos ___ vivendo
com a convicção que um de nós 
será mortal. 


 


IA



Tenho uma vizinha austríaca 
mulher elegante
carrega nos erres
quando diz 
                             boa tarrrde 
 provoca uma brisa perfumada 
quando passa em passo firme
tem dálias vermelhas na varanda
e luz quente nas cortinas
 
estranhamente à noite escuto
uma voz de homem 
cantando Schubert
no quarto do sótão. 


 




 Foto do autor do texto



De cada vez que percebo
que te vais desnudar para mim
penso que definitivamente 
voltou algo idêntico ao amor 

talvez o amor seja isto
o que fica ___ mesmo depois do fim. 


 


IA



Somos muitos muitos mil
os de punhos tão fechados
que cravamos as próprias unhas
nas palmas das nossas mãos 
     e vamos pelo sonho
     e vamos pela música 
     que é a poesia cantada
     por sobre todas as fronteiras 
ainda somos muitos mil
a amassar o pão que ninguém amassou
nem deus nem o diabo.