Caros leitores/as
Estarei ausente do Vosso convívio  até ao dia 1 de Agosto
conto com a retoma das Vossas indispensáveis visitas nesse dia. 
A poesia continua. 
Um abraço.



IA



Como último recurso para viver
a vida complicada e absurda
tornei-me prático de ciências ocultas

acabo de comprar
um mocho empalhado
um baralho de tarô
um saquinho de búzios 
e meia dúzia de velas

é madrugada ___ fico 
a combinar as setenta e oito ilustrações 
e à espera do cantar do galo. 


 





Voando me aproximo do mundo
planando desço sobre o rio estreito
aumento a velocidade e corro
no sentido das águas 
aves seguem-me em silêncio 
até sermos um bando 
 
voamos para a certeza
de que o futuro existe

de homens nos tornámos aves
tomaremos novos nomes
num imenso país novo
e de novo nos tornaremos homens
com toda e experiência
de termos estado perto do céu  
 
chegámos ao futuro
onde o tal país novo 
não existe como novo
é um velho país de caçadores 
este nosso voo foi apenas
uma breve passagem pela vida.


 





És clandestino
disse uma voz

nesse tempo 
eu punha a fome em cima da mesa
e dormia num colchão de palha

ser clandestino 
talvez fosse ser livre
nesse tempo
de desejo e de uma casa incerta. 


 


IA



Tomo um atalho
entre as trevas e o silêncio 
ao longe homens em paraquedas
caem como neve
por sobre os muros vejo
mulheres de regador em punho
obrigando as suas flores a viver
cabras a exibirem as hastes
para os cães funcionários 
homens a carregarem cruzes
com metades de Cristo
pessoas descalças 
a empurrarem os seus velhos

chego ao fim do atalho e encontro
um vasto campo de cogumelos. 



 

Foto do autor do texto



A memória 
é uma cafeteira de água a ferver

lembro-me de tudo

da ninhada de gatos debaixo do meu sono
do aroma provocador dos bolos na fábrica das traseiras 
do azul em construção em frente da minha varanda
do pequeno caixão branco que ajudei a passo lento
do rio entre mim e a cidade um imenso mar 
dos domingos e do sol que os pais nos ofereciam

lembro-me de mim como se tivesse existido 
e já soubesse agora quem sou. 

 




Foto do autor do texto



Criança 
Prado
Melodia
Céu 
Futuro
Sossego
escrevo algumas palavras certas
e destas nascem outras
felizes inventos da língua 
de quando era o princípio 
e não existiam palavras infelizes

escrevo sentado na cadeira do tempo
sabe-me a boca a sândalo de dia
e a canela de noite 
escrevo palavras certas e felizes
há um eco que repete as palavras
por isso me algemaram 
mas não me arrependo do poema.


 




Encontro no meu lugar de sempre
uma mulher
uma silhueta sombra de um desejo antigo 
um desenho no lençol branco da espera

e faço do desejo um acto
como uma corrida pela planície 
como em outubro desejar agosto 
como ter encontrado uma definição para tudo

sempre com medo de errar
escrevo-lhe um poema com as mãos 
sobre aquela beleza inesperada e tranquila 
como um invento de uma língua nova

o poema começa e acaba assim
Se o teu sorriso fosse a pintura da tua boca
fazia-te um poema com palavras novas
porque a poesia é uma coisa muito séria.


Foto do autor do texto



É ali que fico
numa mesa do café antigo 
como se fosse o lugar
onde o meu espírito vive
contemplando o mundo 
nessa mesa os mapas inteiros
de países imaginários que deixaram 
os que passaram por ali
círculos de café 
impressões digitais
sons impressos
lamentos
revoltas
despedidas
é ali que fico
numa forma de não estar só 
até que se apaguem as luzes.


 


Foto do autor do texto



Já estive exilado várias vezes
dentro do meu próprio exílio 
de vez em quando largo-me por aí fora
num barco de papel que eu próprio faço 
mas não vou longe
passo de um lado para o outro
do lago do jardim da cidade
divirto as crianças mas irrito o guarda
quando vê cisnes assustados a esvoaçarem 
acabo com água pelo joelho
mas interrompo o exílio dentro do meu exílio 

nunca chegas para me salvar do ridículo 
ou talvez seja por isso que nunca chegas. 

 


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Fernando Guimarães


1928 - 2025


IA



O homem inventou-se a si próprio 
num elaborado impulso criador
inventou Adão 
num criativo desígnio 
inventou Eva

Adão caminha 
ignorando para onde
com a parra sobre os olhos
impedido de contemplar 
a beleza de Eva. 



Foto de Torre de Babel



Se disseres 

nasci! 


passam-te creme no corpo

e avisam-te do lugar que é o mundo


pegam-te ao colo

e dão-te uma bolacha


dão-te um nome 

e passas a ser um número


ensinam-te palavras

e dão-te uma rede para caçar borboletas 


ensinam-te a falar

mas certas falas em voz baixa 


dizem-te que és a infância 

mas perdes o direito ao colo


mostram-te um rio

para te distraírem do céu 


e tu dizes

nasci! ___ nasci! ___ nasci! 

então 

põem um réptil à tua porta

que deves alimentar


muitos anos depois

ao veres as fotos do passado

dizes

ninguém muda a minha natureza

e com força de vontade

deixas de respirar.



 



Já há um estranho cheiro a cera

no interior da minha casa

o meu projecto foi uma casa de barro

para que um dia esta terra

seja uma irrecuperável ruína 

para que depois de mim a casa

não sirva a mais ninguém 

e se desfaça sob a chuva diluviana

do meu último dia


já há um estranho cheiro a cera

as velas já estão acesas

alguém adiantou o destino erradamente 

fico em vigília fora do tempo

impaciente o lume lavra o projecto

porque já é o fim da história 

começa a chover sobre a minha casa

o que prova que sendo o fim do tempo

ainda não é tarde


renasço aqui __ ali ___ em qualquer lugar.