Voando me aproximo do mundoplanando desço sobre o rio estreitoaumento a velocidade e corrono sentido das águasaves seguem-me em silêncioaté sermos um bando
voamos para a certezade que o futuro existede homens nos tornámos avestomaremos novos nomesnum imenso país novoe de novo nos tornaremos homenscom toda e experiênciade termos estado perto do céu
chegámos ao futuroonde o tal país novonão existe como novoé um velho país de caçadoreseste nosso voo foi apenasuma breve passagem pela vida.
Tomo um atalhoentre as trevas e o silêncioao longe homens em paraquedascaem como nevepor sobre os muros vejomulheres de regador em punhoobrigando as suas flores a vivercabras a exibirem as hastespara os cães funcionárioshomens a carregarem cruzescom metades de Cristopessoas descalçasa empurrarem os seus velhoschego ao fim do atalho e encontroum vasto campo de cogumelos.
A memóriaé uma cafeteira de água a ferverlembro-me de tudoda ninhada de gatos debaixo do meu sonodo aroma provocador dos bolos na fábrica das traseirasdo azul em construção em frente da minha varandado pequeno caixão branco que ajudei a passo lentodo rio entre mim e a cidade um imenso mardos domingos e do sol que os pais nos ofereciamlembro-me de mim como se tivesse existidoe já soubesse agora quem sou.
CriançaPradoMelodiaCéuFuturoSossegoescrevo algumas palavras certase destas nascem outrasfelizes inventos da línguade quando era o princípioe não existiam palavras infelizesescrevo sentado na cadeira do temposabe-me a boca a sândalo de diae a canela de noiteescrevo palavras certas e felizeshá um eco que repete as palavraspor isso me algemarammas não me arrependo do poema.
Encontro no meu lugar de sempreuma mulheruma silhueta sombra de um desejo antigoum desenho no lençol branco da esperae faço do desejo um actocomo uma corrida pela planíciecomo em outubro desejar agostocomo ter encontrado uma definição para tudosempre com medo de errarescrevo-lhe um poema com as mãossobre aquela beleza inesperada e tranquilacomo um invento de uma língua novao poema começa e acaba assimSe o teu sorriso fosse a pintura da tua bocafazia-te um poema com palavras novasporque a poesia é uma coisa muito séria.
É ali que ficonuma mesa do café antigocomo se fosse o lugaronde o meu espírito vivecontemplando o mundonessa mesa os mapas inteirosde países imaginários que deixaramos que passaram por alicírculos de caféimpressões digitaissons impressoslamentosrevoltasdespedidasé ali que ficonuma forma de não estar sóaté que se apaguem as luzes.
Já estive exilado várias vezesdentro do meu próprio exíliode vez em quando largo-me por aí foranum barco de papel que eu próprio façomas não vou longepasso de um lado para o outrodo lago do jardim da cidadedivirto as crianças mas irrito o guardaquando vê cisnes assustados a esvoaçaremacabo com água pelo joelhomas interrompo o exílio dentro do meu exílionunca chegas para me salvar do ridículoou talvez seja por isso que nunca chegas.
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Se disseres
nasci!
passam-te creme no corpo
e avisam-te do lugar que é o mundo
pegam-te ao colo
e dão-te uma bolacha
dão-te um nome
e passas a ser um número
ensinam-te palavras
e dão-te uma rede para caçar borboletas
ensinam-te a falar
mas certas falas em voz baixa
dizem-te que és a infância
mas perdes o direito ao colo
mostram-te um rio
para te distraírem do céu
e tu dizes
nasci! ___ nasci! ___ nasci!
então
põem um réptil à tua porta
que deves alimentar
muitos anos depois
ao veres as fotos do passado
dizes
ninguém muda a minha natureza
e com força de vontade
deixas de respirar.
Já há um estranho cheiro a cera
no interior da minha casa
o meu projecto foi uma casa de barro
para que um dia esta terra
seja uma irrecuperável ruína
para que depois de mim a casa
não sirva a mais ninguém
e se desfaça sob a chuva diluviana
do meu último dia
já há um estranho cheiro a cera
as velas já estão acesas
alguém adiantou o destino erradamente
fico em vigília fora do tempo
impaciente o lume lavra o projecto
porque já é o fim da história
começa a chover sobre a minha casa
o que prova que sendo o fim do tempo
ainda não é tarde
renasço aqui __ ali ___ em qualquer lugar.