As ondas
as ondas
as ondas
batem fortes as marés
no chão que encontram
o mar ruge como os leões.
Já fui criança no tempo em que ser criançanão era ser um adulto pequenojá andei à pendura em carros eléctricosno tempo em que escolhiamos o nosso percursojá fiz a pé o caminho de casa para a escolae depois para casa quando o mundo era pequenojá soube gostar de mulheres com simplicidadeno tempo em que o amor demoravajá comi cerejas peras e maçãsno tempo em que elas de facto existiamjá fui dador de sangue no tempoem que éramos pessoasjá sou do tempo em que o homem ainda matavapela terra e já ambicionava a luajá vivi no tempoem que Deus era uma dúvidajá me resta pouco tempo para ser de outro tempoo meu calendário parou.
Chegado aos confins do tempocomo é libertadora a insensatezcomo é criativa a ambiguidadecomo é jovial a incoerênciaestar contra a correnteser um inadaptadoestar insatisfeitoainda ser contestatáriosensato __ concreto __ coerenteé que fizeste um bolo de limãoque eu vou desenformarcomo se te despisse.
Estou sentado à portada minha casa térreafico a sentir ___ quando passasa brisa com aromaa bolo de limãolembro-me dantesquando cheiravas a canelados lugares belosdo teu corpo entreguefoste e levaste contigotodos os perfumes da casanão me lamentodesistir do amor é uma conquista.
O vento empurra o homempor uma rua não escolhidao homem palmilha o ciclo do álcoolele é um ex-alcoólicoque todos os dias acaba e recomeçao ciclo do álcool e do tabacosendo que um e outro o empurramcom o vento rua abaixocaminhando de costas para a tristezajulga ele no seu enganoao nível da loucurao homemcom o seu fígado e os seus pulmõesa morrerem todos os diasjá foi um bom rapaz que se envolveunas actividades do amor e faliuo homem vai dormir e voltará amanhãpor outra rua desconhecidasem o amor perdidoque trazia guardado num bolso roto.
É à noite que as bruxas se indispõemque se regam de petróleo e se ardempela madrugada dentropurificam-se pelo fogotudo de um modo naturalsem alaridosem vestígiosa terra recebe as cinzastudo fica terminado quando o sol nascedas raízes brotarão troncos imparáveisguardo na minha insóniamais um clarão da noite.
Vivemos em países diferentestu para oeste eu para lesteentre nós há um meridiano desconhecidoque torna diferentesas nossas expressõesas nossas referênciaso nosso entendimentosobre a construção do mundoa capital que inventámospara cada um de nósestá a milhares de quilómetrosda nossa fronteira comummais depressa eu iria a Atenasdo que à torre onde flutua a tua bandeirasó coincidemas nossas mãosas nossas bocasos nossos corpos completosvivemos em países diferentesonde pode ser dia nume ser noite no outroa morte eliminará as fronteiras __ sem combateou então dividiremos uma laranja entre os doisas nossas mãos tocam-se.
É curta a longa vidana verdade nunca chega o tempopara nos redimirmose começar tudo de novonão aquele encontroe a sua repetiçãonão aquela casasem projecto de vidanão a fecundaçãoe o arrependimentonão o lume ateadoe a sua extinçãonão o abandono de alguéme a retoma de alguémnão a partidae nunca a chegadanão uma sinfoniae depois o silêncioé curta a longa vidahá uma certa bravura em enfrentaraquilo a que chamam destino.
Eu estava totalmente mortoquando me encontrasteainda te ouvi dizer o meu nomeno meio dos soluçoso frio que ainda sintoentrou-me pelas mãosassim que deixei a chave de casadebaixo do vaso à entradafiquei à tua esperadeita-te sobre mim ___ agorae acalenta-me o corpoassim sobreviverei.
Um homem chega a casa e senta-se no sofásobre a almofada que ainda não está rotaa mulher vem da cozinhacomo se já trouxesse fogo no cabeloo homem sente uma estranha sensação de liberdadee dizfui despedidoa mulher não fala durante uns segundosdepois dizvem comer fiz sopa de ossoso homem levanta-se sem expressãoao longe as bombas desarrumam a urbebatem à porta ___ a mulher vai abrirdois militares de camuflado castanhotrazem algemado o filho do casal que levarãodepois de ele comprovar a sua identidadea mãe não encontra palavras e choracomo se já tivesse perdido o filhodentro de um camuflado castanhoo pai resiste e disfarça o medotudo como se a cidade já estivesse mortade repente a casa torna-seo espectro do mundo no clarão de uma bombano dia seguinte o povo lamenta o acontecimentoque vê no título do jornal da terraUm drone inimigo mata mais uma família feliz.