As ondas 

as ondas

as ondas

batem fortes as marés 

no chão que encontram

o mar ruge como os leões. 








Da série Poemas da minha infância 


Malmequeres 

Desfolho malmequeres 
pela menina do segundo andar
tudo fica confuso
gosta de mim umas vezes
não gosta de mim outras vezes
a minha mãe é que não gosta 
que eu acabe com os malmequeres

     assim não há amor que resista! 
diz ela. 




 

Foto do autor do texto



Já fui criança no tempo em que ser criança 
não era ser um adulto pequeno

já andei à pendura em carros eléctricos 
no tempo em que escolhiamos o nosso percurso

já fiz a pé o caminho de casa para a escola
e depois para casa quando o mundo era pequeno

já soube gostar de mulheres com simplicidade
no tempo em que o amor demorava

já comi cerejas peras e maçãs 
no tempo em que elas de facto existiam

já fui dador de sangue no tempo
em que éramos pessoas

já sou do tempo em que o homem ainda matava
pela terra e já ambicionava a lua

já vivi no tempo
em que Deus era uma dúvida 

já me resta pouco tempo para ser de outro tempo 
o meu calendário parou. 


 



Foto do autor do texto 




Chegado aos confins do tempo
como é libertadora a insensatez
como é criativa a ambiguidade
como é jovial a incoerência 

estar contra a corrente
ser um inadaptado
estar insatisfeito
ainda ser contestatário 

sensato __ concreto __ coerente
é que fizeste um bolo de limão 
que eu vou desenformar
como se te despisse. 



 




Cada dia é um sítio grave
as ameaças são da cor da terra
o medo é onde se assentam os pés 
   
um poeta já não é nada 
estar vivo ou estar morto
são estados naturais e confusos 
 
um poeta já é substituível ___ então 
aconchega-se nos restos de ternura
e prepara-se para o Outono. 


 


Foto de We Travel Portugal


Na verdade
o lado negro do dia
pode começar logo de manhã 
     não ouvir uma voz 
     o dilúvio lá fora
     o telefone parecendo morto
sou um sentimental
a única coisa boa de que me lembro 
é que te beijava ao acordar
e me sabias a bola de Berlim.


 



Foto do autor do texto


O amor é como os lápis 
se não os formos afiando 
ficam rombos
até deixarem de escrever. 





Foto do autor do texto 




O amor é uma escada
que não sabemos quantos degraus tem
e quando os subimos
já estamos a descer. 




 


Pisas com desdém contra a terra
as palavras que inventei e soletrei
nos tempos de solitário amador
como sempre pensei que era
guardei segredo do que me atormentava
e vou a colher da terra o que sobrou
de tanta persistência escrita ___
___ nada feito ___ caíste para trás 
como se caísses para o passado

encontraste no suicídio o poema da tua vida
fizeste bem
morrer em glória não é para todos. 

Foto do autor do texto 



Foto do autor do texto



Estou sentado à porta 
da minha casa térrea
fico a sentir ___ quando passas 
a brisa com aroma
a bolo de limão 

lembro-me dantes
quando cheiravas a canela
dos lugares belos
do teu corpo entregue

foste e levaste contigo
todos os perfumes da casa
não me lamento
desistir do amor é uma conquista.


 


Foto do autor do texto 



O vento empurra o homem
por uma rua não escolhida
o homem palmilha o ciclo do álcool 
ele é um ex-alcoólico
que todos os dias acaba e recomeça 
o ciclo do álcool e do tabaco 
sendo que um e outro o empurram
com o vento rua abaixo
caminhando de costas para a tristeza
julga ele no seu engano
ao nível da loucura
o homem 
com o seu fígado e os seus pulmões 
a morrerem todos os dias
já foi um bom rapaz que se envolveu
nas actividades do amor e faliu

o homem vai dormir e voltará amanhã 
por outra rua desconhecida
sem o amor perdido
que trazia guardado num bolso roto. 

 


IA



É à noite que as bruxas se indispõem
que se regam de petróleo e se ardem
pela madrugada dentro
purificam-se pelo fogo
tudo de um modo natural
sem alarido 
sem vestígios 
a terra recebe as cinzas
tudo fica terminado quando o sol nasce
das raízes brotarão troncos imparáveis 

guardo na minha insónia 
mais um clarão da noite.


 


IA




Oferece-me os teus seios
todos os dias os beijarei 
ao acordar e antes de adormecer 
fora isso
cuidarei deles como se fossem
parte do meu corpo. 




 

IA




Vivemos em países diferentes 
tu para oeste eu para leste
entre nós há um meridiano desconhecido
que torna diferentes 
as nossas expressões 
as nossas referências 
o nosso entendimento 
sobre a construção do mundo
a capital que inventámos 
para cada um de nós 
está a milhares de quilómetros 
da nossa fronteira comum
mais depressa eu iria a Atenas
do que à torre onde flutua a tua bandeira
só coincidem 
as nossas mãos 
as nossas bocas
os nossos corpos completos

vivemos em países diferentes
onde pode ser dia num
e ser noite no outro 
a morte eliminará as fronteiras __ sem combate
ou então dividiremos uma laranja entre os dois
as nossas mãos tocam-se. 


 

 

Foto do autor do texto


Eras tu dormindo o próprio poema 
foi assim
que te escrevi em pranto
por já não estares dormindo. 





 

Desenho de Matias Rodrigues Kassaye



É curta a longa vida
na verdade nunca chega o tempo
para nos redimirmos
e começar tudo de novo 

não aquele encontro
e a sua repetição 
não aquela casa
sem projecto de vida
não a fecundação 
e o arrependimento
não o lume ateado
e a sua extinção 
não o abandono de alguém 
e a retoma de alguém 
não a partida
e nunca a chegada
não uma sinfonia
e depois o silêncio 

é curta a longa vida
há uma certa bravura em enfrentar
aquilo a que chamam destino.


 


Foto do autor do texto



Vejo com quantas lágrimas 
pões o pão na mesa
e como é ruim o caldo quente
com a gordura da emoção
 
pousa-te no ombro uma ave
e aconchega-se no íntimo 
do teu corpo ___ mãe 
ficas serena e todos assistimos

à tua sobrevivência.




Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Eu estava totalmente morto 
quando me encontraste
ainda te ouvi dizer o meu nome 
no meio dos soluços 
o frio que ainda sinto 
entrou-me pelas mãos 
assim que deixei a chave de casa 
debaixo do vaso à entrada

fiquei à tua espera
deita-te sobre mim ___ agora
e acalenta-me o corpo

assim sobreviverei.




IA



Um homem chega a casa e senta-se no sofá 
sobre a almofada que ainda não está rota
a mulher vem da cozinha
como se já trouxesse fogo no cabelo
o homem sente uma estranha sensação de liberdade
e diz 
     fui despedido
a mulher não fala durante uns segundos
depois diz
     vem comer fiz sopa de ossos

o homem levanta-se sem expressão 
ao longe as bombas desarrumam a urbe
batem à porta ___ a mulher vai abrir
dois militares de camuflado castanho
trazem algemado o filho do casal que levarão 
depois de ele comprovar a sua identidade 
a mãe não encontra palavras e chora
como se já tivesse perdido o filho 
dentro de um camuflado castanho
o pai resiste e disfarça o medo 
tudo como se a cidade já estivesse morta
de repente a casa torna-se
o espectro do mundo no clarão de uma bomba

no dia seguinte o povo lamenta o acontecimento 
que vê no título do jornal da terra
     Um drone inimigo mata mais uma família feliz.