Foto do autor do texto



   A princesa está diferente
disse o homem de bigode e condecoração ao peito
   subiu em mim o grau de apuro com que olhei a princesa
disse o homem
não sabendo o dito falador do sulco que abriu
no meu pensamento
a mácula que me ficou do tempo em que fui ignorado
pela bela princesa admirada pelo duque falador
inquieto com a beleza daquela
que já foi a graça dos meus dias

saí sem qualquer vénia dizendo
   passe bem
exibindo a minha bengala que levantei ameaçador 
pensei
hei-de convidá-lo para um copo de absinto envenenado
quanto à princesa reservo-lhe um poema
como uma oração à beleza sob todas as formas
depois abandono-a na minha memória 
e vou registando o momento à maneira de Proust
o tempo de vida é curto e longo. 


 


IA



Deram-me a mão 
uma das duas da minha vida
que não eram as minhas
eu disse
     agora tenho que ir
e como foi diferente das outras
despedidas angustiantes mas 
com esperança de retorno
esta
a de agora 
foi como um pedido de desculpas 
por não poder ser evitada
e dela não haver regresso

como foi tranquila e bela
no ascenso do fumo do incenso
eu disse 
abram a janela
estou de partida
levo a tua mão na minha. 



 



As mãos que acariciaram

no prelúdio do amor

são as mesmas que embalam

a semente feita homem.





 

Foto do autor do texto



É tarde 
é sempre tarde 
quando te encontro
deixo tudo e corro
atrás de uma sombra
no jogo que me propões 
percebo
na agitação da folhagem
que já passaste por ali
e não te encontro

foi a última vez que brinquei 
às escondidas contigo. 







De que lado dormias na nossa cama? 

??? 

eu lembro-me

era do lado certo. 






Nos meus passeios pelo campo
encontrei um corvo que me seguiu
trago-o para te o oferecer
negros cantos lhe ensinei
em troca me revelou trazer nele
o espírito de Bukowski
achei melhor não o ensinar a falar 
este corvo que te ofereço 
apenas cantará negras canções 
as palavras serei eu que te as direi. 


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VIVA O 25 DE ABRIL!





Não fiques sentado o dia todo

segue uma rã 

e encontrarás o rio




 




Acordarei se for necessário 
deste sono profundo 
em que estou acordado
tudo o que me dizem
me parece raro
mas continuo a crer que
há uma certa inutilidade
nesta escritura de versos
acordarei se for necessário 
deste sono profundo 
em que estou acordado
e encerrarei de vez esta voz
que me dita as palavras
 
depois adormeço a sério 
e sonho que vivo em paz
como um cacto das Galápagos.


 


IA




Subiu ao céu fora de tempo
por isso ninguém o esperava
aqui multidões o acompanham
na sua nova missão 
ocupar-se da sua eternidade
e comprovar as dúvidas  
que a sua inteligência lhe suscitou 
 
atrás das portas douradas
alguns baixam a cabeça 
e benzem-se com alívio 
tudo voltará à calma
e ao silêncio.


 





O silêncio chega sem aviso

quando vier fiquemos imóveis 

ele vai rondar-nos

mas partirá. 




IA



A mão desconhecida que inventou o mundo

a mão de luz e escuridão 
a mão de vento e dilúvio 
a mão de sangue e dor

não cabem anéis de estrelas
nos dedos dessa mão. 


 


 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues



A noite é tempo de esquecimento 
porque o olhar pousa no escuro

hoje perdi um poema porque a memória 
é um lugar leve no sono chão 

fiz as palavras quando me deitei
guardei o pensamento e adormeci

o que pensei primeiro 
nasci num tempo em que parecia que o mundo 
tinha começado naquele agora

um homem vivo perdeu o poema
que já não lhe pertence. 


 


IA



Habituei-me ao silêncio e ao nevoeiro
de dia e de noite ___ rejeitei a riqueza 
os que querem ser ricos desejam coisas
sem interesse para mim
os que querem ser ricos andam 
com malas cheias de papéis em branco
sonham-se a si próprios mesmo sem sono
falam alto sem contenção e sabem tudo
têm óculos escuros mesmo de noite
usam relógios grandes na mão direita
sinais sinais sinais a saírem de um charuto

habituei-me ao silêncio e ao nevoeiro
que me interessa a mim
comer peixe cru com dois pauzinhos?


 


Foto do autor do texto



Diz um poeta
o tempo de vida corresponde
ao espaço percorrido menos
os espaços repetidos

diz o outro poeta
na razão directa da dificuldade ser maior
quanto à confissão da verdade
em oposição à mentira

diz o poeta
se compararmos o efeito de um olhar 
com a tangencia de uma mão 
tocando um seio em silêncio 

diz o outro poeta
como o encanto dos risos de criança 
no concurso sem vencedores nos saltos
de frente e de costas no jogo do avião 

dizem os dois poetas em coro
como se compreendem os poetas. 


 


Foto do autor do texto



Eram assim as manhãs de domingo
acordar com o sol num quadrado amarelo
na parte de cima da janela do meu quarto
o Pinóquio pendurado do tecto
sossegado ainda a dormir
os risos das crianças dos vizinhos
no pátio de trás 
a farinha a fumegar com um desenho a canela
que a minha mãe fazia diferente todos os dias
as voltas turísticas ao quintal no meu triciclo azul
com o chapéu de “cóboi” mas de palha

a voz do meu pai a mandar-me comprar gelo
na fábrica ao fim da rua para o almoço melhorado
a tarde dourada 
na marquise com a minha mãe a ler uma história 
para evitar o meu atletismo no corredor
a noite de luz mortiça
o jantar na cozinha com o romance radiofónico
da Emissora Nacional às vezes com lágrimas 
e depois não me lembro de mais nada
adormecia com o meu gato

hoje é domingo de manhã e compreendo
que já não haja aqui ninguém neste exílio. 


 


Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Sou ainda o mesmo que atravessou a tua vida
sem olhar para um lado e para o outro
que bebeu pela tua chávena logo no primeiro dia
que te deixou ver como alimentar uma ave
que dormiu contigo num colchão de palha
que desenhou a tua silhueta para não te esquecer
que beijou um crucifixo para selar a verdade

fui apenas um acaso ocidental
a viver com toda a bagagem no oriente
sem regresso. 


 


Foto do autor do texto



Traz à minha boca o que me falta
dá-me algo quente que me anime
toca os meus lábios lentamente 
e insiste uma e outra vez
só contigo me alimento
dá à minha boca uma função 
antes que ela se feche para sempre.


 


Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Porque em silêncio a terra me convoca
e eu sinto
tudo nela me acena e me constrói
e eu vou
canta agora terra que as aves se calaram
e eu ouço ___    
___em silêncio reconheces no teu canto
que o artista se inventa a si próprio 
para não ter que viver no mundo 
inventado pelos outros

em silêncio a terra me convoca
e eu vou. 


 



A eternidade é um lampejo no êxtase 

o momento antes da anunciada ausência. 




Foto do autor do texto 



É voltar enquanto é tempo. 








Hoje encontrei Miguel de Unamuno
que conversava com a Primavera 
e lhe falava sobre o seu exílio em Fuerteventura

"A paisagem é triste e desolada, mas é linda... 
as pessoas são excelentes e hospitaleiras. 
Este é um verdadeiro sanatório, 
a temperatura é excelente e há 
uma primavera eterna."