É tarde para ilusões 
o treino da vida habilita-nos a viver
aprendi
a respirar lentamente 
a perceber que o coração é cego
a esconder da mão esquerda
o que faço com a direita
a ouvir com um ouvido
e a silenciar com o outro
já não acredito em novas flores

serei imperfeito ___ agora 
mas é assim
eu sou este e o outro que eu sou. 


Fotos do autor do texto 



Foto do autor do texto



A minha casa é antiga ___ 
___ tem um longo corredor
e tem uma passadeira em tiras coloridas
percorro vezes sem conta esse caminho
do caos ___ à ordem ___ ao caos
um dia será sem regresso
a passadeira em tiras coloridas 
não terá fim. 


 


Foto do autor do texto



Um peixe inconsciente procura um lugar
e cruza inadvertido um raio de luz
que costuma ser terrestre
mas que nuvens desviaram a sua incidência 
não saberá o peixe que a respiração do mundo
é uma enorme guelra por onde se escoa o dia
e que o Deus que ali vive 
e que tudo ordena e desordena
lhe concedeu esse último raio de luz
antes do sacrifício que ele como deus concebeu
para todos os peixes e animais
para todos os homens
para todos os outros deuses. 


 


Foto de Daniel Filipe Rodrigues


O escuro é enorme
quando entramos nele
fica ensurdecedor e
não se sabe onde acaba. 



Foto do autor do texto



O caminho dos sentidos 
é uma passagem por um canavial 
que se faz sozinho
o nosso grito só nós o ouvimos
a nossa respiração só a nós asfixia 
não somos mais do que
um coração sentado no tempo

os corações batem sozinhos e são cegos
o caminho dos sentidos faz-se em silêncio.


 



Quero morrer nos braços de alguém 

com uma Cantata de Bach à minha volta

e um poema de saudade sobre o peito


vou abrir concurso público. 




Foto do autor do texto



Sou um café que me dissolvo apenas em leite
ao contrário de ti
que tentas dissolver-te em qualquer líquido 
mas ficam sempre vestígios à tona
da mistura com os cereais que trazes do campo
nada que não se resolva com uma colher de música. 








Imagem de ChatGPT



Aqui começa um rio
debaixo dos meus pés 
um fio de água 
que passa pelo coração 
e desagua na tua fonte
onde liberto os demónios. 




Foto de Ana Luís Rodrigues 



Digo-te
nascer
como se dissesse
quero-te
como se fosse
fácil 
o mesmo que dizer
minha

digo-te
olhos
como se dissesse
existo
como se fosse
claro
o mesmo que dizer
dia

digo-te
vontade
como se dissesse
fome
como se fosse
essencial
o mesmo que dizer
montanha

dizes-me
palavras
como se dissesses
delírio 
como se fosse
areia
o mesmo que dizer
adeus. 

 



Instante sobre instante
a terra e o mar me interpelam
com os seus silêncios e rumores 
não sei que sabedoria me tocou 
que compreendi as ciladas
que o homem monta a si próprio  
 
os deuses morreram
viva o trágico deus homem. 



Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Pudéssemos ter na boca uma luz
e que isso não fosse entendido como uma doença 
e que isso fosse entendido como uma nova forma
de falar dos pensamentos em luzes e em cores
e também em palavras mas sempre luminosas
que essa fosse uma forma de entendimento
entre os vivos e aqueles que são condenados
apenas por estarem vivos e não terem palavras 
e que desde logo as crianças 
fossem respeitadas na sua forma luminosa de falar 
que apenas as cores definissem o estado de espírito 
sem necessidade da fealdade dos rostos
na controvérsia e na contrariedade
que a polémica fosse um arco-íris 
uma forma de arte ___ a decoração do mundo

se pudéssemos ter na boca uma luz em cada fala 
seríamos a luminosa respiração do mundo. 


 


Imagem IA de Artguru



A minha gaguez é a vontade que tenho
de não falar nunca mais

surpreendi-me com um anjo que aterrou no meu jardim
e que começou a comer as flores uma a uma 
com intervalos para um bater de asas
nesse bater de asas levantou um pó cor-de-rosa 
que coloriu a luz que iluminava a cena

por que o fazes? 
perguntei

o anjo respondeu longamente com palavras próprias 
numa linguagem que não foi clara
e de cada vez que eu o interrompia para lhe dizer 
que não entendia ___ ele falava mais alto
na sua linguagem própria desconhecida
e eu gesticulava e insistia no meu protesto 
assim estivemos até de madrugada ___

__ o anjo saciado da sua necessidade de se florir
voou até ficar oculto pela escuridão 
tossi por ter inspirado a nuvem de pó cor-de-rosa 
e foi assim que fiquei gago e sem vontade de falar
nunca mais. 




Foto de Daniel Filipe Rodrigues


O tempo teimoso
insiste em ir além da minha vontade 
mesmo quando tomo a tua mão 
e o tempo pára para nós 
ele continua célere no meu sangue
e grita silenciosamente
batendo nos muros
do meu coração 
dos meus pulmões 
do meu cérebro inconstante

os deuses que ignoramos
conduzem o tempo
mãos anónimas dão de comer
à nossa vontade
ao desejo assim chamado
pelos que fecundaram
inventores de céus e montanhas
de mares e buracos negros
aqueles que são eternos
e nos obrigam ao tempo teimoso

o tempo desce a escada
ouço-lhe os passos ___ é tarde
termino o poema.


 




Sou a face ímpar desta folha
mas sou também a par 
tudo o que digo na ímpar 
de nada sei quando par
mas
certo é que sou uma
e a mesma folha
quando me rasgarem como ímpar 
rasgam-me como par também 

mas
por enquanto sou apenas 
uma folha em branco. 






Vou morrer em Moscovo
quando já lá estiver
vou enganar todos

vou deixar cair muito cabelo
permitirei que me cresça um bigode
andarei um pouco curvado
e quando me perguntarem 
por mim a mim próprio 
direi a todos 

sem vacilar e mudando de voz
ele partiu! 


 




Sangue
a vida invisível 
tão puro quanto o dos impuros
dos que derramam o sangue dos puros
os que fazem e pervertem
as suas próprias leis

sangue
a vida invisível 
que multiplicamos sem razão que se conheça 
sangue
que ferve
que congela
que ignora o temor
mas que se escoa célere 
sangue doce que de tão doce
morre antes de nós ___ lentamente

sangue
a vida invisível 
o único atestado que comprova
a nossa possível eternidade.


 


Foto do autor do texto



Confesso-te que me encanta 
vestir as tuas camisas perfumadas
sei que os botões pedem a minha mão direita
a mesma que desaperta os teus botões 
e o mais que é necessário 
para tocar o lugar onde guardas o coração 
com que encho a minha mão 

confesso-te que me arrepia a pele 
vestir as tuas camisas perfumadas
e sentir ainda o teu peito sobre o meu
tive acanhamento quando comecei a gostar 
de vestir as tuas camisas mas perdi-o 
quando começaste a vestir as minhas

agora sabemos que foi assim
que nos ensinámos a viver um dentro do outro
mesmo quando estamos sem camisa. 


 


Foto de Ana Luís Rodrigues


A espera é o caruncho do amor
é quase tarde vem 
enquanto é possível equilibrar-me 
na cadeira do tempo
antes da ruína. 



Imagem de FREEP!K




Ó gentes de quem eu gosto 

quando os indesejáveis decidirem vir visitar-me
avisem-me
para eu poder tirar os degraus da escada
por onde se chega ao meu corpo inteiro. 



 




Um poeta diz

          Faço um poema nocturno 

          que seja um momento de compensação 

          pelo sangue perdido durante o dia

          no ofício de viver

o poema começa assim

          Faço um garrote no golpe

          por onde se esvai

          a minha força de vontade

          … 


 


Imagem de Artguru



Virá um tempo da nossa vida
em que nos sentiremos como LEGOS
saudades encaixadas em saudades. 




Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Visto-me com a tua pele
e tu com a minha
como se vestíssemos o mesmo corpo. 




Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Uso o meu nome como um código 
espero ser reconhecido
quando me apresentar na fronteira
entre o meu e o outro tempo
nada será então mais natural
do que entrar pelo tempo dentro
e perder a consciência 

se não for reconhecido
haverá silêncio e trevas
e a incompreensão será um insulto.