Tanto tempo depois
reconheço a estação de onde parti
recordo
a paisagem a correr pelas janelas
as árvores alaranjadas
o rio azul
sob uma névoa rosada
era Outono naquele tempo
ainda não me sentia soldado
mas eu já era um soldado
éramos uma mancha verde
em direcção a um lugar que já não existe
que nos disseram vermelho
levávamos na boca o medo do desconhecido 
porque já tinham aprisionado a verdade
e nós não sabíamos
na verdade nunca me senti soldado 
nem nos combates 
 
voltei tarde
já não havia ninguém aqui
tantos anos depois reconheço 
a estação onde cheguei
e não tenho ninguém à minha espera. 

 



IA



O dia adormece e faz-se noite

as minhas noites 
encostam-se aos tectos da casa
escorrem pelas paredes
estrelas coloridas
iluminando aqui e ali as fotografias 
que tenho pelas paredes

é poderosa a nossa imaginação 
a técnica instintiva
de bloqueio à solidão na fronteira
entre o terror e a insanidade.


 

 

IA




Naquele fim de tarde em Veneza
uma gôndola negra passou 
por debaixo da ponte do nosso encontro 
como um pressentimento ___
___ será inútil a minha tentativa
de evitar a ruína 
não adormeceremos juntos
pela primeira vez

afinal Veneza já não existe
mas só eu e tu é que sabemos. 



 



Há em mim um lado pronto
a deixar de viver
faço à morte essa concessão 

afinal eu não sabia nada sobre a vida
que ela nos adoece à traição 
sem dar sinais e nos engana sempre
ao ponto de por tanto a amarmos
não acreditarmos na sua traição 
enquanto os outros vêem tudo em nós 

tenho em mim um lado pronto
a deixar de ter vida
há um coração 
a bater
a bater
a bater 
no fundo. 



 


 


Foto de Barbudos.pt



Trinco palavras lâmina e engulo-as
feito faquir
tomo-lhes o gosto
e assim degusto com prazer
o sabor sincero do que digo. 




Foto de Daniel Filipe Rodrigues


Quando eu era rapaz no tempo
da inconsciência e dos cabelos revoltos
gostava de me sentar à beira do rio
que passava lá em baixo ao pé da nossa casa 
com os pés dentro de água lançava 
miolos de pão acreditando que os peixes
os viriam buscar ___ e vinham
ouvia lá em cima os risos das minhas irmãs 
com o latido do Faísca brincando
e pensava
que bom era ser Verão e estar de férias 

hoje passei nesse lugar para me devolver
aos sons e aos sentidos 
da minha infância harmoniosa
o rio ocupado e imperfeito já não é o mesmo
homens dentro dele tentam caçar os peixes
sem lhes darem miolos de pão pacificamente 
multidões banham-se aos gritos
impondo às águas os seus corpos dementes
já não ouço as vozes das minhas irmãs 
e o Faísca desapareceu há muitos anos
ou o levaram
ou ele partiu desencantado com as rotinas

regresso e faço caminho pela casa abandonada
entro no meu carro e faço o poema
depois parto para o fim do Verão 
para o fim do Outono
para o fim do Inverno
para o fim da Primavera. 


 


Imagem de Freepik



O artista surpreende-se 
com o ocasional que ele próprio produz
perante a sua obra 
volta a ser um feto
na barriga do mundo
em silêncio e no escuro
decifra o princípio da vida
sem tempo
sem nome
até que a obra seja
a sua própria pele
do seu próprio corpo. 


 


Foto de Ana Luís Rodrigues


 O amor é um país longínquo e estranho
exuberante e irreal
com um exigente nível de vida
sem cuidados paliativos para o desgosto
autoritário para poder governar 
frio nas separações ___ violento até 

o amor é um país longínquo e estranho
de onde viemos
e onde não regressaremos. 






Em caixas de cânfora 
trago bordados da Palestina
entrançados com linhas de sangue
em panos das vestes inúteis 
dos que morreram
são bordados com motivos
da dor antiga
quase tradicional de
Homens 
Mulheres
Crianças 
que não páram de bordar há décadas 
a história do desespero
em panos das vestes inúteis 
dos que morreram

comprem senhores
os bordados da Palestina 
em caixas de cânfora 
o stock é limitado!


 




Por cansaço inútil 
deixei de encorajar as ideias
deixei de usar as palavras
depois deixei de viver com o corpo

ainda não percebi
se alguém desistiu de mim
ou se alguém me matou
deixando-me vivo. 





(continuação) 


as religiões se extinguirão aos poucos na directa medida 
em que o Amor se desenvolva e preencha o nosso espírito 
delas ficará a arte nas suas formas plástica e musical
o sangue da beleza que fará viver
os tristes
e os solitários 

um dia o homem e a mulher inventarão o Amor
como base da comunicação universal
e entre eles inventarão os seus sucessores
como um acto de Amor. 


 




(continuação)


com a invenção desse Amor todas as formas de agressão 
se tornarão reprováveis e com isso 
as fábricas de máquinas para matar
serão reconvertidas para o fabrico de bens
que criem conforto à vida das pessoas

o diálogo entre mães e pais e entre estes e os seus filhos 
será sempre um acto de Amor e da fruição das ideias

os governantes do mundo conviverão
como uma grande família em que todos ajudarão todos
a viver ___ ao invés de uns viverem da pobreza dos outros


 (continua)


 



Um dia
o homem e a mulher como seres humanos
que vislumbram a possibilidade de se aperfeiçoarem 
como seres inteligentes inventarão um novo sentimento 
a que darão o nome de Amor 
numa forma superior desenvolvida e inquebrantável

e essa será uma das maiores empresas da humanidade 
que trará ao mundo benefícios incalculáveis
com esse invento o ser humano tomará esse
Amor Superior como fundamento de todos os seus actos
será um bem gratuito à disposição de todos sem restrição de
quantidade
forma
ou lugar 

 

(continua) 

 

Henri Matisse - Ícaro



A peça foi levada à cena
era violenta a trama
o empenho e o calor da representação 
foi teatral e a apoteose
aconteceu com tal realismo
que todos os espectadores morreram
menos um. 




IA


Ouvi dizer que a partir de agora
vamos todos ter apenas um nome
teremos de escolher um 
dos que ainda temos
e os outros serão apagados

daqui para a frente seremos grupos
quando chamarem um nome
iremos todos os iguais
eles não sabem
mas assim seremos mais fortes

não esqueçam 
os nomes que vamos perder
ainda iremos recuperá-los. 


 



É estranha e imprópria a nudez do mundo
baixem os olhos ou olhem para o céu 
mantenham as crianças em casa
 
resistam
até que os homens que despem o mundo
sejam prisioneiros da vergonha. 




IA




Nunca te vi chorar
nem mesmo quando te assassinei
a golpes de palavras 

também sem lágrimas conservo 
as cicatrizes na minha paisagem 
como um campo de trigo ondulante

se um dia chorares
deito fogo à seara
e regresso. 



 

IA



Numa prisão uma mulher borda 
um bibe de criança que ela própria costurou
escreve em ponto cruz a palavra 
     saudade
em fina e azul linha com que escreve 
o tempo que lhe falta
cada ponto é um sorriso do seu filho 
cada dia é um ano
o tempo longo vai tornar o colo inútil 

a mulher embala sem corpo essa saudade. 


 


IA



Durmo sempre do mesmo lado da cama
como se dormisse do lado norte
durmo a minha insónia contigo ausente
como se tivesses partido do sul
para mais longe. 



Foto do autor do texto



Acontece por vezes quando a memória 
nos trás uma palavra
o nome do amigo que já não está 
uma referência triste sobre outra coisa
e um finíssimo raio de luz
ilumina um lugar em nós num vale 
ou numa montanha do nosso mapa
essa luz que nem sempre existiu
mas durante anos iluminou tudo
vencendo todas as sombras
sem que déssemos por isso

essa finíssima luz era  o brilho da felicidade 
naquele tempo que depois  
com a sua escancarada boca
devorou
hora a hora
ano a ano
o que tinha para devorar

até que um dia esse finíssimo raio de luz
ilumina uma pedra incomoda 
que se movimenta e soa como um eco
como um ser que trazemos dentro de nós 
num lugar recôndito do nosso mapa
ou como uma areia que se contém 
numa ampulheta que escorre 
para um lado ou para o outro
conforme nos erguemos ou nos deitamos
passando rapidamente na sua lentidão 

os outros dormem ou acordam
com as suas pedras e as suas areias
em vez de um raio luminoso
e encontramo-nos e estremecemos
com a nossa imagem 
numa praça qualquer do mundo
um lugar onde nunca estivemos juntos
mas que a minha vontade me faz acreditar
num quadrado de terra como uma praça maior
onde estarei de facto rodeado dos espectros
dos quais serei um ou talvez mais do que um

um finíssimo raio de luz
escreve no chão o meu nome
e imagino agora que estás ao meu lado.