IA




As almas são transparentes
dizem
quando a minha alma persegue a tua
e entram uma na outra
somos dois
com uma única silhueta luminosa. 



 

Foto de Ana Luís Rodrigues 




Noite ___ reencontro-te
depois de um dia destes
só tu
poderias estar à minha espera
fica
só tu me acompanhas. 



 




Nos membros e em outros lugares
do meu corpo obsoleto
a agilidade de outros tempos
ainda ensaia voos
de ramo em ramo
o corpo ainda se reconhece
numa cabeça 
nos braços 
no tronco
nas pernas
tal e qual um homem
obsoleto é certo
mas pronto para mudar de mundo.


 



Nunca confessei a ninguém 
que 
sou um pássaro umas vezes 
que 
sou um peixe outras vezes
sei voar tão alto que fico sem chão 
ou
vou ao mar profundo à escuridão 
 
à beira do abismo me invento
no mar alteroso me invento
nunca confessei a ninguém 
que
sou grito
sou eco
depois sou silêncio 
nunca confessei a ninguém 
que
também sou ausência.


 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues



De ajuste em ajuste perdi as pernas
diz uma cadeira

um homem tem só duas pernas 
pensa o ajustador. 




Restaurante Solar dos Mouros - Lisboa



Um homem e uma mulher
estão sentados a uma mesa
são pais e avós 
com a sua missão cumprida
comem com a boca fechada
já esgotaram as palavras
o seu silêncio é o silêncio da discórdia 
durante o tempo do passado
não tiveram tempo para concordar
agora discordam em tudo
e o corpo também já não é diálogo 
o seu silêncio é o silêncio da discórdia

um homem e uma mulher
estão sentados a uma mesa
de um restaurante popular
nem têm olhos um para o outro
fora do prato que dividem 
e num ímpeto disfarçam 
o que determina o seu silêncio 
eles são iguais aos seus pais
que lhes mostraram como são 
os órfãos de palavras 
que se encontram em todos os lugares 
e nos restaurantes em silêncio 
aos fins de semana

um homem e uma mulher
estão sentados a uma mesa
colam os dedos às migalhas
sossegadas sobre a toalha
e afogam o silêncio num prato de sopa
chegaram ao ponto de secar o seu nome
que só pronunciam
no azedume dos seus desencontros
molham o pão na angústia  
e dão estalos de prazer com a língua 

o homem e a mulher 
que estão sentados a uma mesa
de um restaurante penúmbreo 
temem a morte do outro
porque isso será a prazo
a sua própria morte 
quando esse pensamento
lhes cai da cabeça para os olhos
dão a mão ao outro
é o máximo de ternura
de que são capazes
já que as suas línguas 
nunca mais se encontrarão. 


 

 

Foto de FREEP!K



Era tão urgente o azul
a luz contra o abismo
o assomo exaltado do vermelho
contra o grito sem cor
que desfigura a Infância 
e anuncia o branco da mortalha
mais cedo do que tarde 
cairão lilases as lágrimas sobre
uma ideia
um pensamento
um desejo
era urgente o azul que nos salvasse

um cogumelo de fumo branco e escuro
é visível ao longe. 


 


Pintura de Pierre Alechinsky 
 



Nascerei em dois mil e quarenta e cinco
estamos em dois mil e vinte e cinco
quer dizer
que durante vinte anos não serei nada. 







Tanto tempo depois
reconheço a estação de onde parti
recordo
a paisagem a correr pelas janelas
as árvores alaranjadas
o rio azul
sob uma névoa rosada
era Outono naquele tempo
ainda não me sentia soldado
mas eu já era um soldado
éramos uma mancha verde
em direcção a um lugar que já não existe
que nos disseram vermelho
levávamos na boca o medo do desconhecido 
porque já tinham aprisionado a verdade
e nós não sabíamos
na verdade nunca me senti soldado 
nem nos combates 
 
voltei tarde
já não havia ninguém aqui
tantos anos depois reconheço 
a estação onde cheguei
e não tenho ninguém à minha espera. 

 



IA



O dia adormece e faz-se noite

as minhas noites 
encostam-se aos tectos da casa
escorrem pelas paredes
estrelas coloridas
iluminando aqui e ali as fotografias 
que tenho pelas paredes

é poderosa a nossa imaginação 
a técnica instintiva
de bloqueio à solidão na fronteira
entre o terror e a insanidade.


 

 

IA




Naquele fim de tarde em Veneza
uma gôndola negra passou 
por debaixo da ponte do nosso encontro 
como um pressentimento ___
___ será inútil a minha tentativa
de evitar a ruína 
não adormeceremos juntos
pela primeira vez

afinal Veneza já não existe
mas só eu e tu é que sabemos. 



 



Há em mim um lado pronto
a deixar de viver
faço à morte essa concessão 

afinal eu não sabia nada sobre a vida
que ela nos adoece à traição 
sem dar sinais e nos engana sempre
ao ponto de por tanto a amarmos
não acreditarmos na sua traição 
enquanto os outros vêem tudo em nós 

tenho em mim um lado pronto
a deixar de ter vida
há um coração 
a bater
a bater
a bater 
no fundo. 



 


 


Foto de Barbudos.pt



Trinco palavras lâmina e engulo-as
feito faquir
tomo-lhes o gosto
e assim degusto com prazer
o sabor sincero do que digo. 




Foto de Daniel Filipe Rodrigues


Quando eu era rapaz no tempo
da inconsciência e dos cabelos revoltos
gostava de me sentar à beira do rio
que passava lá em baixo ao pé da nossa casa 
com os pés dentro de água lançava 
miolos de pão acreditando que os peixes
os viriam buscar ___ e vinham
ouvia lá em cima os risos das minhas irmãs 
com o latido do Faísca brincando
e pensava
que bom era ser Verão e estar de férias 

hoje passei nesse lugar para me devolver
aos sons e aos sentidos 
da minha infância harmoniosa
o rio ocupado e imperfeito já não é o mesmo
homens dentro dele tentam caçar os peixes
sem lhes darem miolos de pão pacificamente 
multidões banham-se aos gritos
impondo às águas os seus corpos dementes
já não ouço as vozes das minhas irmãs 
e o Faísca desapareceu há muitos anos
ou o levaram
ou ele partiu desencantado com as rotinas

regresso e faço caminho pela casa abandonada
entro no meu carro e faço o poema
depois parto para o fim do Verão 
para o fim do Outono
para o fim do Inverno
para o fim da Primavera. 


 


Imagem de Freepik



O artista surpreende-se 
com o ocasional que ele próprio produz
perante a sua obra 
volta a ser um feto
na barriga do mundo
em silêncio e no escuro
decifra o princípio da vida
sem tempo
sem nome
até que a obra seja
a sua própria pele
do seu próprio corpo. 


 


Foto de Ana Luís Rodrigues


 O amor é um país longínquo e estranho
exuberante e irreal
com um exigente nível de vida
sem cuidados paliativos para o desgosto
autoritário para poder governar 
frio nas separações ___ violento até 

o amor é um país longínquo e estranho
de onde viemos
e onde não regressaremos. 






Em caixas de cânfora 
trago bordados da Palestina
entrançados com linhas de sangue
em panos das vestes inúteis 
dos que morreram
são bordados com motivos
da dor antiga
quase tradicional de
Homens 
Mulheres
Crianças 
que não páram de bordar há décadas 
a história do desespero
em panos das vestes inúteis 
dos que morreram

comprem senhores
os bordados da Palestina 
em caixas de cânfora 
o stock é limitado!