Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Craft diz
um homem precisa de uma mulher

Elga para não levantar uma sombra
ao que Craft disse 
põe a tocar um disco do agrado de Craft

Craft diz
uma forma de não dialogares
é Bach entre nós 
ou a falar com os dois

Elga senta-se no sofá comprido
com despreocupação ___ as suas pernas
visíveis até meio da coxa ___
___ são douradas

Craft diz
um homem precisa de amar uma mulher

Elga levanta-se e vai buscar um copo
que enche até meio com uma bebida
Craft nunca bebe
volta para o sofá e senta-se 
de novo na mesma posição e
finalmente fala
uma mulher não precisa de amar um homem

Craft diz
essa é a grande desconjunção ___
___ desde sempre ___ das paixões 

Elga toca a bebida com os lábios 
depois pergunta
desconjunção com que significado? 
Elga aparenta grande à vontade
e sabedoria no tema

Craft responde
sem tirar os olhos das pernas douradas
com o significado contrário de conjunção 

Elga diz
o amor não é o mesmo
para o homem ou para a mulher
a mulher é mãe e ama

Croft apercebe-se que a fala de Elga
tocou no lugar certo do tema
e diz 
o amor por um filho preenche na mulher
todo o espaço dedicado ao amor

Craft levantar-se e sem mais palavras sai
e pensa
envelhecerás e mais filhos não terás 
e pensa
isto será o início e o fim de um poema. 

_____

Elga morrerá em 2076 
sem memória há longos anos
abandonada num lar de terceira qualidade
pela sua única filha ausente
num país longínquo 
Craft morrerá uma semana depois
num acto de coragem
impedindo-se de respirar. 


 


Foto do autor do texto sobre uma obra (excerto) de Pablo Picasso



Ao largo há um navio imóvel 
decerto esquecido da sua rota
ou talvez esquecido da data da partida
naquele mar vejo muitos navios infelizes
este que vejo agora tem vida
de vez em quando dá à luz
umas fumarolas brancas pela chaminé 
talvez para chamar a atenção 
reparo agora que este navio é o mesmo
do livro de histórias da minha infância 
de onde se ausentou por ter estado
aos anos em abandono

afundo-o no livro de novo
apenas com o meu olhar.


 


Foto do autor do texto



Estou à espera

dos frutos da laranjeira 
que plantei no meu jardim

de conseguir nadar e voar

da possibilidade de me multiplicar

depois nascer de novo
para o lugar de onde nasci

do último concerto de ano novo

da ressurreição de todos os poetas

de que a IA ponha termo
à desinteligência dos homens 

que alguém consiga descobrir
o porquê disto tudo

do regresso do navio
que partiu há cinquenta anos

tudo será possível se
o Danúbio Azul se tornar
o único hino para todos os países.