Tenho apenas um desejo
meter a chave à porta da minha casa
sentar-me
deixar florir os meus pensamentos
e que estes ocupem
o espaço vazio à minha volta.
Vê a minha boca como uma grutaque acolhe um exército brancoe a língua uma bandeiracada palavra uma granadaos lábios são muralhasque resistemacaso pensas que a minha bocase manterá aberta?batalhas não terão chãoo sangue sou eu por dentroe assim ficarei ___ agoranum poema só meu.
O sacerdote levantou a mão direitae disseo Senhor esteja convoscoos crentes baixaram a cabeçae disserame contigo tambémfindo o ofíciotodos abandonaram o temploera dia de feirahavia vozes e músicao chão parecia bailaras vozes já eram gritoso rumor da terra paroua poeira filtrou o solna pequena aldeiaestiveram com o Senhorvinte e três homensdez mulheresquatro criançaso templo permaneceu intactoe protegeu o sacerdote.
Resisto ao tempocom a força do corpono lugar da concepçãonesse derradeiro esforçoescuto do outro ladoa expressão da língua mãea assemblar imagens do passadocom o corpo do presentenuma sugestão eróticaque resiste à cadência do tempoesse é o momentode atravessar a ponte correndo.
Um homem cumpremais uma madrugadaem silêncioele dialoga com o medoeste é o seu medo pessoalele sabea sua origeme a sua idadeo homem sabe que se encontracom o seu medotodas as madrugadase só ele podemandar calar o medomas não sabe comoo homem diz em voz altaos vários nomes do medodesgostoimpotênciatraiçãodesamorabandonosolidãoo homem repete as palavrascomo se cantasseapagaram a luzo homem adormecesem resistência.
Reivindico o prazer totala musicalidade de um rio a correruma oração numa igreja abandonadaa elevação do corpo e o ensaio do vooum chocolate quente com a chuva lá forauma voz próxima no mutismo da noiteBach nos auscultadores sem tempo sem luza foto daquela que há-de chegara luminosidade de um corpo e o seu calorreivindico o prazer totalem vez da liturgia do encerro.
Um poeta morreu nos braços da sua amanteesta cantou como se estivesse a adormecê-loo poeta perguntou-lhe por que cantava elanaquela hora do seu sofrimentoa amante respondeu-lhe tocando-ocom um looongo beijo na boca que o sufocoude tanto o amar ajudou-o a morrere lentamente inspirou a sua alma.
A nossa necessidade de consoloé impossível de satisfazerStig Dagerman
Encontrei a quinta portaa entrada para o mundo ___ de novoo quinto lugar ___ celestea quinta porta ___ humananela entro saindoaceitando que a montanhame espera imóveluma montanhaque tem algo dentro delaconheço a sua silhueta ___ cinco vezescinco vezes me encontreino início da subidafoi esta a abundânciaque a vida me ofereceucinco mundos estrangeiroscinco bocas murmurandocinco desejos mirradoscinco sóis desencontradoscinco nuvens persistentescinco pedras rebolandocinco portas como pálpebrascomo foi difícil chegar aquiencerrei a quinta portae deitei a chave ao rio.
Pouco importa a beleza físicase não há luzpouco importa o timbre da vozse não há cançãoimporta a silhueta do espíritoimporta o desenho da palavraimporta o gesto com que se desnudaimporta o movimento das asasimporta a particularidade do lugar comumimporta a cor do retratomuito importa a beleza da luze o timbre do canto da vida.
Chego a casasento-me no meu cadeirão do costumeacendo duas velasponho a tocar um trecho de saxemeio jazz meio baladaestá friocubro os joelhos com uma mantaverde padrão tipo escocêspego num álbum de fotografiasque está na mesa ao meu ladoe folheio-oPai muito direito a fumarMãe a rir despenteada pelo ventoeu pequeno no campo sobre um burroas minhas irmãs com chapéus de palhapequenas e iguaiso nosso gato cinzento a dormirtodos ___ sempre todosno quintal da nossa casadepois no terraço da outra casaou na praia à sombra dos barcos dos pescadoresdaqueles com um bico apontado para o céunós pequenose maiorese ainda maioresdepois ___ várias folhas sem nadano fim do álbumum pequeno ramo de folhas secasuma relíquia do casamento dos meus paistodos chegaram ao fima música chegou ao fimsopro a chama das velasapago a luze adormeço ali mesmocom o passado ao colo.