Tenho apenas um desejo
meter a chave à porta da minha casa
sentar-me
deixar florir os meus pensamentos 
e que estes ocupem
o espaço vazio à minha volta.




 

Foto do autor do texto



Escrevo com lápis 
afiado de dureza B
que de tanto se esvair
em vulgaridades
acaba cansado
com a ponta
como um cepo. 




Foto do autor do texto



Vê a minha boca como uma gruta
que acolhe um exército branco
e a língua uma bandeira
cada palavra uma granada
os lábios são muralhas
que resistem
acaso pensas que a minha boca 
se manterá aberta? 
batalhas não terão chão 
o sangue sou eu por dentro
e assim ficarei ___ agora 
num poema só meu.


 


Foto do autor do texto



O sacerdote levantou a mão direita
e disse
     o Senhor esteja convosco
os crentes baixaram a cabeça 
e disseram 
     e contigo também 
findo o ofício 
todos abandonaram o templo
era dia de feira 
havia vozes e música 
o chão parecia bailar
as vozes já eram gritos
o rumor da terra parou
a poeira filtrou o sol

na pequena aldeia 
estiveram com o Senhor
vinte e três homens
dez mulheres
quatro crianças 
o templo permaneceu intacto
e protegeu o sacerdote.


 


Foto de Daniel Filipe Rodrigues 



Pacientes os olhos
não querem mais do que falar
como se a distância que aumenta
não fosse mais do que uma resposta
cada vez mais longe.



 




Medo
as ruas vão encher-se de assassinos
que virão buscar a casa
os que não quiseram ser assassinos

como ser humano
a vergonha é maior que o medo
não há poesia que nos valha. 




Foto de Daniel Filipe Rodrigues 



Resisto ao tempo
com a força do corpo
no lugar da concepção 
nesse derradeiro esforço 
escuto do outro lado
a expressão da língua mãe 
a assemblar imagens do passado
com o corpo do presente
numa sugestão erótica 
que resiste à cadência do tempo

esse é o momento
de atravessar a ponte correndo. 


 


 

Foto de Bartolomeu Rodrigues


Um homem cumpre
mais uma madrugada
em silêncio 
ele dialoga com o medo
este é o seu medo pessoal
ele sabe 
a sua origem
e a sua idade
o homem sabe que se encontra 
com o seu medo
todas as madrugadas 
e só ele pode
mandar calar o medo
mas não sabe como
o homem diz em voz alta 
os vários nomes do medo
desgosto
impotência 
traição 
desamor
abandono
solidão 
o homem repete as palavras 
como se cantasse

apagaram a luz
o homem adormece
sem resistência.


 



Foto do autor do texto



Reivindico o prazer total
a musicalidade de um rio a correr 
uma oração numa igreja abandonada
a elevação do corpo e o ensaio do voo
um chocolate quente com a chuva lá fora 
uma voz próxima no mutismo da noite
Bach nos auscultadores sem tempo sem luz
a foto daquela que há-de chegar
a luminosidade de um corpo e o seu calor

reivindico o prazer total
em vez da liturgia do encerro. 


 


Desenho a tinta de Eduardo Chillida



“as mãos o lugar
multidimensional do corpo”
Eduardo Chillida

 

Peço-te
olha-me muitas vezes
para eu saber quem sou
fala comigo ___ a eternidade é 
as nossas palavras ditas
toca-me para eu saber
que ainda existo. 


 


Foto do autor do texto



Nas ruas de Granada
procurei as nossas sombras 
ante o impossível prefiro pensar
que continuam por ali
no lugar do encontro
fotografei as várias sombras 
em nenhuma me encontrei 
mas tu sim
estavas numa delas

talvez seja a isto que se chama fé.


 


Foto de Daniel Filipe Rodrigues 



Um poeta morreu nos braços da sua amante
esta cantou como se estivesse a adormecê-lo 
o poeta perguntou-lhe por que cantava ela
naquela hora do seu sofrimento 
a amante respondeu-lhe tocando-o
com um looongo beijo na boca que o sufocou

de tanto o amar ajudou-o a morrer
e lentamente inspirou a sua alma. 


 


Foto do autor do texto tomada do documentário VIDA SELVAGEM



Fiquei para além de todos
tive a ousadia de lhes sobreviver
mostrando-me como se me escondesse
fiquei aqui como penitência 
por ter ficado para além de todos.




Foto de Daniel Filipe Rodrigues



A nossa necessidade de consolo
é impossível de satisfazer 
Stig Dagerman

 


Encontrei a quinta porta
a entrada para o mundo ___ de novo
o quinto lugar ___ celeste
a quinta porta ___ humana
nela entro saindo 
aceitando que a montanha 
me espera imóvel 
uma montanha
que tem algo dentro dela
conheço a sua silhueta ___ cinco vezes
cinco vezes me encontrei
no início da subida

foi esta a abundância 
que a vida me ofereceu
     cinco mundos estrangeiros
     cinco bocas murmurando
     cinco desejos mirrados
     cinco sóis desencontrados
     cinco nuvens persistentes
     cinco pedras rebolando
     cinco portas como pálpebras 
como foi difícil chegar aqui

encerrei a quinta porta
e deitei a chave ao rio. 


 


Foto do autor do texto tomada do documentário NOSSO MUNDO



Pouco importa a beleza física 
se não há luz
pouco importa o timbre da voz
se não há canção 

importa a silhueta do espírito 
importa o desenho da palavra
importa o gesto com que se desnuda
importa o movimento das asas
importa a particularidade do lugar comum
importa a cor do retrato

muito importa a beleza da luz
e o timbre do canto da vida.


 


Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Cedi em pequenas prestações 
a minha forma de ser
é na diferença de mim
que me encontro
se me virem entre a multidão 
anunciem que morri.




Foto do autor do texto



Chego a casa
sento-me no meu cadeirão do costume
acendo duas velas
ponho a tocar um trecho de saxe
meio jazz meio balada
está frio
cubro os joelhos com uma manta
verde padrão tipo escocês 
pego num álbum de fotografias 
que está na mesa ao meu lado
e folheio-o 
Pai muito direito a fumar
Mãe a rir despenteada pelo vento
eu pequeno no campo sobre um burro
as minhas irmãs com chapéus de palha
pequenas e iguais
o nosso gato cinzento a dormir
todos ___ sempre todos
no quintal da nossa casa
depois no terraço da outra casa
ou na praia à sombra dos barcos dos pescadores 
daqueles com um bico apontado para o céu 
nós pequenos
e maiores
e ainda maiores
depois ___ várias folhas sem nada
no fim do álbum 
um pequeno ramo de folhas secas
uma relíquia do casamento dos meus pais
todos chegaram ao fim

a música chegou ao fim
sopro a chama das velas
apago a luz
e adormeço ali mesmo
com o passado ao colo.